quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Luiz Sávio de Almeioda. A Penha em Penedo: uma rua em preto e branco e suas janelas coloridas

 

Adentrando a Rua da Penha

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Luiz Sávio de Almeida. A Penha em Penedo: uma rua em preto e branco e suas janelas coloridas

  Penha  en Penedo: una calle y sus coloridas ventanas   

Rua da Penha a Penedo: una strada in bianco e nero e le sue finestre colorate 

 Rua da Penha in Penedo: a street,  black and white,  and its colorful windows  

 Rua da Penha à Penedo: une rue en noir et blanc et ses fenêtres colorées

 Um pequeno bilhete sobre uma Rua em Penedo

ALMEIDA, Luiz Sávio de. A Penha em Penedo: uma rua em preto e branco e suas janelas coloridas. Tribuna Independente. Maceió, 22 abr. 2012. Contexto
 
       Estamos desenvolvendo um trabalho de documentação sobre Penedo e nosso destaque é a memória da Rua da Penha. Sem dúvida, é um trabalho que passa por nossa vida pessoal, desde que fomos criança naquele pedaço da cidade. Contexto presta hoje, uma homenagem à cidade de Penedo e convida para esta espécie de crisma da Rua da Penha, este ente maravilhoso do urbano penedense.
      Este trabalho, graças ao Professor Sérgio Onofre, teve condições de se desenvolver com a participação de duas alunas de turismo da Universidade Federal de Alagoas, campus daquela cidade: Laissa Maria da Silva e Francismara Costa Torres.  Ambas são a coluna mestra de nossa edição e merecem o nosso reconhecimento e o nosso elogio pelo modo sério como encararam este grande exercício de evocação que anda na fronteira entre uma etnografia urbana visual e a imagem como relação histórica e estimulante da evocação. Este número bem poderia chamar-se Rua da Penha: evocação nº 1.

Sávio de Almeida


Laise Maria da Silva: estudante de turismo da UFAL  no campus de Penedo e Coordenadora Estudantil de nosso Projeto. Parte do material fotográfico publicado é de sua autoria. Vice-Coordenadora do Projeto Piassabuçu


Francismara Costa Torres. Coordenadora do Projeto  Memória de  Piassabuçu. Estudante de Turismo da UFAL, campus de Penedo.  Coordenadora Adjunta do nosso projeto em Penedo. Parte das fotos publicadas é de sua autoria. 

  A Penha em Penedo: uma rua em preto e branco e suas janelas coloridas

Luiz Sávio de Almeida


Os começos da Rua da Penha

       O que seria uma rua? O que estaria significando? Difícil conseguir uma forma de juntar todas as possibilidades que a palavra abre, com vistas ao enfoque a dar ao texto e às experiências vividas.  Temos a rua como artéria, mas temos e densamente, a rua como vida e experiência coletiva.  Em nosso caso, interessa uma rua que é componente da articulação do território da cidade e que integra parte de suas áreas centrais baixas e altas.  Aliás, diga-se de passagem, é pela Rua da Penha que circulam, também, os que saem de Penedo em direção a norte e ramificações a oeste e leste. A Rua da Penha é um tronco.

A rua e nosso lugar

Adentrando a Rua da Penha






Desde que me entendo de gente, que a rua é uma subida e a descida sempre foi pelas Rosário estreita, a que vai desembocar no largo antes da Catedral. Isto é sinal que a cidade de Penedo é montada em partes altas e baixas. O Cajueiro Grande, de rua larga, possibilitava ser mão dupla e o trânsito pesado vindo do ou para o rio bifurca-se na praça do coreto. A Rua da Penha é uma linha que acompanha uma colina, rua plantada em corte e guardando correspondência ao Rosário Estreito e a intimidade entre ambas é testemunhada pela declividade do Beco da Preguiça, ele mesmo uma ladeira.  A rua começa no oitão do Gabino Besouro e vai até a Praça, mas, na minha geografia urbana de Penedo, ela entra sem cerimônia pela Praça e para na altura do Colégio das Freiras, onde sempre demarquei o início do Cajueiro Grande.


Área da Casa do Penedo

Eu morei quase defronte do Beco da Preguiça; entre ele e a casa dos meus pais, ficavam a bodega do Seu Cazuza e a casa do Dr. Agnelo; na verdade, era somente atravessar a rua e já estaríamos no Beco da Preguiça; na minha contagem, morávamos no terceiro quarteirão, contando após a subida acentuada da ladeira em frente ao Ginásio Diocesano que o povo chamava, não sei a razão, de Jegue Doido, na magia de transformar o gê em ji. Vindo da parte baixa, a rua seria alimentada pelo trânsito pesado que passasse pela frente do Jegue Doido, subisse a ladeira à esquerda – não tinha como ir direto – e dobrasse à direita, na entrada ao lado do Gabino Besouro; poderia vir pelo ramo do Convento, mas seria trânsito leve de carro de passeio, como ainda hoje se dá. 

O encontro com o Beco da Preguiça

Cada casa é um caso



O tempo mudou a Rua da Penha; o belo sobrado em frente à Igreja caiu; algumas fachadas sentem o peso do desgaste do tempo, mas ela, seja como for, sempre teve o poder de evocar, de ser uma evocação.  Em que reside e se funda este poder, a não ser na possibilidade das lembranças sobre ela e por via delas, a rua torna-se repartida, comungada pelos que vivem e viveram seu mundo. Na Rua da Penha existem atualidades, desatualidades e transições. A rua pressupõe algum tipo de comunhão sobre o passado e é uma comunhão sobre a diversidade de vidas e soluções. Deste modo, nenhuma casa repetiria a outra ou, em outras palavras, em cada casa uma história ou cada casa é um caso e, como sabemos, cada caso é um caso de tal modo que evocar, no caso, exige a filigrana das particularizações.

       A diversidade de vidas na rua a transforma em um mosaico do que se costuma chamar de destino, situações individuais de vidas, numa série de imponderáveis que obrigatoriamente irão fazendo sentido no fracionamento e algumas vezes no conjunto.  E quanto mais a vida passa pela rua, quanto mais vidas vão se formando, equacionando, propondo.  Jamais nós poderíamos pensar que um casarão cheio de troféus do Santa Cruz fosse um dia transformado em restaurante, que uma casa seria transformada em centro de memória e nem mesmo jamais poderia pensar, quando morávamos na Rua da Penha,  que iríamos buscar-nos nela e ela teria o que nos responder.  A rua seria cativa da memória? Esta é uma pergunta que martela as fotografias que foram produzidas nesta andada pela fronteira entre uma etnografia urbana visual e a imagem como relação histórica. Também se trata de uma andada entre uma relação pessoal e o produzido por terceiro, de tal modo que o individual entra pela descaracterização das cores e pelos cortes, a evocação necessitando do toque de quem evoca no aprofundamento da relação entre o sujeito e sua história.

Chegando na  Praça

As famílias e os casos

A Rua da Penha demanda unidades de habitação e nelas, via de regra, estão as famílias. A casa tem uma história, a família também e ambas são um conjunto definido. São muitas as vidas que passam em uma casa, e muitas as casas que fazem uma rua. As histórias das casas e das famílias podem se cruzar de modo intenso, ou apenas superficialmente no conjunto dos seus membros ou na particularidade de alguns. Mormente quando as amizades eram traçadas com os pais de família, tinha-se muito mais do que apenas a vizinhança; haveria o vizinho, mas haveria, também, o amigo das famílias. Por via dos meus pais, a grande ligação na Rua da Penha foi com Seu Pontes e Dona Virgínia; a ramificação secundária foi com o Dr. Agnelo e Dona Ida.  Um era o vizinho do lado direito e, por sua vez, vizinho da Bodega do Seu Cazuza: este era o Dr. Agnelo cujo consultório funcionava  na sala da frente de sua residência. O vizinho da frente era Seu Pontes e morava na casa que antes fora da Dona América que, ao enviuvar, foi morar mais abaixo com  seus pais.

O senso da evocação


O engraçado é que o nome Penha me faz interligá-la a Luiz Gonzaga e à Igreja da Penha no Rio de Janeiro. Sempre dou este salto de Penedo para o Rio de Janeiro e lembro a virada de carro que Luiz Gonzaga sofreu, merecendo um baião composto parece que por seu irmão Zé Gonzaga: “Luiz Gonzaga não morreu, nem a sanfona dele desapareceu, seu automóvel na virada se quebrou, o zabumba se amassou, mas o Gonzaga não morreu”. Disso veio o agradecimento de Luiz Gonzaga em outro baião: “Demonstrando a minha fé, vou subir a Penha a pé, pra fazer minha oração...”. Ligo dois elementos importantíssimos em minha formação: Penha e Luiz Gonzaga.
 O sanfoneiro foi à Penha para demonstrar a sua fé; eu vou à Penha para me encontrar no velho calçamento, um imenso sabor de minha experiência como alagoano, numa espécie de referência teórica de que identidade é uma construção por via de experiências vividas: identidade é uma vivência. Na minha arqueologia pessoal, juntam-se calçamento e Luiz Gonzaga no grande abrigo de vida que é a rua. É que tudo evoca.  Estou dentro de uma arte que foi dominada por Nelson Ferreira em dois de seus frevos magistrais, justamente chamados de Evocação 1 e 2. Nelson Ferreira sai chamando pelos nomes: Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon... Individualiza para perguntar sobre os blocos famosos. Os nomes naquele senso imenso de carnaval estão ligados a blocos. Todos os nomes de minha Rua da Penha estão ligados a uma determinada situação, a uma determinada condição.

Evocar... Quem sabe todos estes nomes que surgem são infinitamente postos na história de uma rua, que, na verdade, em parte era o resultado de um caminho, de uma saída da cidade que se formava. Cada nome chama o que se recorda, e a rua passa a ter uma vida espalhada e todo um imaginário se trança por uma lógica que aquele que evoca nem mesmo conhece e nem percebe. Há todo um imaginário da Rua da Penha que se dilui no tempo, como se as representações que se decorrem fossem determinadas pela coletivização de um tempo que depois vai ser evocação.  É que seguindo mais de perto a discussão de Doise ou talvez a ampliando, na ordem das representações, o tempo é o elemento fundamental.  A rede que se estabelece numa rua, tende a ser efêmera enquanto representação e permanente enquanto evocação. É por isso, que a linguagem popular cria uma fórmula genial para desatar este nó teórico que nosso texto vai dando: No meu tempo...!  Os tempos então se confundem: o tempo da rua será o tempo que era nosso e, interessante, por este trabalho tenho a noção de que continua sendo.

A rua é uma rede, como qualquer outra, ou seja, um modo específico de relações e, neste sentido, tudo da rua é um relativo a tudo na rua.  Como se nota, há uma matriz que se apropria ao chamá-la de minha rua, algo bem mais forte do que a rua em que moro. Quando o tempo a destaca de mim, quando os entrelaçamentos ficam vazios da experiência atual, quando ela se torna uma evocação ela assume uma condição específica na linha da memória. Toda rua tem seus Felintos; é por isso que sempre foi belíssima a pergunta cheia de homenagens feita por Nelson Ferreira: “Cadê Mário Mello?”. A experiência atual se acaba quando o poeta diz: “Partiu para a eternidade!”. A eternidade que pode ser evocada. Depois, o poeta frevístico traz a resultante da evocação ou o que vamos chamar processo de evocacionalização na fórmula do lá vem Mário. Mário Mello foi encontrado, assim como encontro a Rua da Penha, numa das formas de sua vida.



Cadê a Rua da Penha? O que existe de permanente na rua enquanto ela existir é a própria rua, e ela é um composto pelo tempo; quando vou à Rua da Penha, vou a uma história e viabilizo a mim mesmo nesta história.  Neste passo, eu sou também a alma da rua, elemento com o qual João do Rio teve um belíssimo encontro. A rua certamente tem alma e a rua é um universo de memória. É esta mistura de arrazoado teórico e evocação, que me levou a querer documentar sistematicamente a Rua da Penha, aquela rua suave, apesar de ser uma artéria de denso tráfico, uniformemente plasmada em renda, se bem, que se diferencie de padrão nas cercanias da pobre igreja, cujo teto me fascinava nos tempos de menino, com a santa nos olhando na missa, estivéssemos onde estivéssemos.
Neste ponto, vejo-me diante de uma categoria que Graciliano Ramos ressaltou: o sentir. Ele escrevia ao poder sentir. Isso é parte da minha fascinação pela Rua da Penha: eu consigo efetivamente senti-la. O sentir dava longo curso à escrita do Graciliano Ramos; desejo apenas comparar o sentir, pois qualquer outra seria descabida. Eu evoco a Rua da Penha por poder senti-la. Tem algo a ver comigo e então eu posso percebê-la. E a ela dou a minha dimensão pessoal. Será que eu sou a Rua da Penha? Seguramente uma parte de mim é.



Um pouco sobre o trabalho

Sérgio Onofre conseguiu duas estudantes para trabalharem e partimos para ensaiar a documentação da Rua da Penha, começando pelas fotografias e vídeos, depois cadastrando para realizarmos entrevistas com os moradores mais antigos da rua, em busca de suas evocações. O trabalho tem como título provisório: Memorial da Rua da Penha. Começamos e do material do primeiro teste que foi realizado, escolhemos umas poucas fotos, transformando algumas em preto e branco e realizando cortes, de tal modo que fosse traçado o contraste entre a grandeza panorâmica sobre a rua e o detalhe das janelas das casas, considerando a janela como um limite entre o público e o privado. É daí o nome desta matéria, que publicamos em homenagem, à velha e querida cidade do Penedo, deixando a rua em branco e preto e dando o tom colorido de suas casas, a partir das janelas, bem como evidenciando a espécie de mistério entre a casa e seu caso.





É preciso levar em conta, a espécie de alquimia que se realiza: enquanto as fotos são produzidas na atualidade do fotógrafo, pela intervenção nas cores e na composição, nos as desatualizamos. É uma forma de possibilitar a evocação que sempre leva a um passado misturado com o tempo, sinal, mais uma vez, de que a memória é um processo e não a cristalização de uma informação. A evocação vai pinçar o traço que se torna a bem dizer fundante da busca da experiência ou da vivência que é bem mais do que o vivido: é a circunstância do vivido. A escrita com a luz – que é a fotografia, mas aqui com as implicações da infografia na marcha da tecnotrônica, termo de Darci Ribeiro –, foi continuada na medida em que tudo se desloca para o processo da evocação. O que foi produzido não tem compromisso com a realidade, embora indique sobre ela; na verdade, o grande objetivo seria transformar a rua num senso ubíquo com ele sendo estendido ao tempo e relativo aos casos da própria rua. A utilização aqui e ali de casas e casos não é um divertimento com a linguagem, mas uma indicação da singularidade no coletivo urbano da rua que nos interessa. A rua passou a ser uma população de possibilidades e dela retiramos a amostra da evocação. Será que a rua foi virtualizada? A evocação necessariamente virtualiza? Ampliar a discussão seria fugir ao objetivo deste texto que é simples: uma viagem na Rua da Penha.



As fotos transformadas em preto e branco foram trabalhadas em contraste e brilho, visando direcionar o olhar, pedir interrogação, dar sentido coletivo à imagem. A foto colorida recebeu apenas o corte, procurando levar uma pergunta: se a janela fosse aberta, que filme se iria ver, considerando que se cada casa é um caso, cada janela abre para um processo de natureza acentuadamente misteriosa? No momento, é o que nós temos a oferecer: Laissa Maria da Silva, Francismara Costa Torres, eu e também e com toda razão: Sérgio Onofre.
A rua foi trabalhada sistematicamente; foi fotografada no início e depois, em intervalos regulares de passos, o pesquisador formava um ponto e na posição leste fotografava o extremo oposto, olhava noroeste e passava para a posição oposta, dando-se a mesma sequência, mudando o que deve ser mudado. Cada foto foi registrada em ficha específica, constando a data em que foi tirada, o autor e a hora. Somente as que fizeram parte do teste em sua totalidade foram trabalhadas; algumas poucas janelas não pertencem a este conjunto. O primeiro resultado do projeto está aqui.  Contexto quer agradecer a parceria do curso de turismo da Ufal, a Sérgio Onofre e, sobretudo, a estas duas meninas que trocaram lazer por conhecer, por enfrentar o campo, exercitar o olhar. É o começo da vida acadêmica que se esboça.
Agora, ande na Rua conosco.

Luiz Sávio de Almeida. Propriá: sua igreja e chaminés

   Quarta-feira, 24 de julho de 2014  San Francisco River, Propriá City

Propriá:  sua igreja e chaminés
Luiz Sávio de Almeida
 
   As fotos foram tiradas durante a Opara ou Racha II. Propriá sempre me chamou a atenção por alguns fatos simples. O primeiro deles é o lamento absolutamente triste e gemido de Luiz Gonzaga em um baião que fala da Rosinha que ficou em Propriá.  Outro é mais família:  é lá que se encontra enterrada a minha avó Adelaide,  mãe  de meu pai.  É vizinha do Cedro, onde havia uma famosa carne do sol. E finalmente, recordo uma cachaça que tomei em Porto Real do do Colégio.

   Era meninote. Minha mãe foi até Arapiraca, passar o Natal com a vovó Dondon, que morava na casa da Tia Lurdes. O casal aproveita e vai visitar a velha Adelaide.  Pelo que me  recordo, ainda não havia a ponte ligando Alagoas e Sergipe e que seria tão reclamada pelo povo do Penedo. Já estava construído o hotel que  ficava  perto da estação de Colégio.  Tomamos dois quartos. Lembro dos banheiros estarem imprestáveis e o cheio nauseabundo que assumia os ares. 

   Meu pai e minha mãe tomam uma canoa. Preferi ficar. E fiquei e emburaquei na cachaça e o resultado foi quase uma coma alcoólica, e quem sabe não  estive. Lembro de vomitar sem parar com o rosto quase dentro da latrina imunda.  Barbaridade. Propriá me olhava do outro lado, rindo sem parar. Pela segunda vez: barbaridade.

   


Aqui está a famosa ponte numa péssima fotografia. A ponta da canoa se intromete e um pequeno ramalhete de baronesa desce devagar. A baronesa desce. O rio às vezes leva um balsedo para o mar. É um belo espetáculo.





Eis a estranha vista da cidade com as torres sem proporção e sem harmonia.  A sujeira domina a beira desta praia. Um velho ponto comercial em evidência, foi um restaurante. Hoje está completamente abandonado. Já almocei várias vezes aí. Do lado direito, nas noites de sexta a domingo, funciona a vida boêmia da cidade.






Aqui, aparecem os espigões das chaminés, tempo das beneficiadoras de arroz, que foram sumindo com a mudança do arroz de vazante.









Aí está a lateral da igreja. Sou fascinado pelo prédio que se encontra à esquerda. Nada entendo. Apenas acho bonito. Gosto de ver, mas de longe.





terça-feira, 29 de setembro de 2020

José Medeiros. Um pouco sobre a vida e sobre as águas de um rio

 

 

 

 

 

 

 

Memória: minha vida e as águas do São Francisco

domingo, 20 de julho de 2014 

Um pouco sobre a vida e sobre as águas de um rio
José Medeiros

Nasci numa fazenda, no município de Traipu, que era um santuário ecológico. Ao amanhecer, acordava ouvindo verdadeira orquestra de pássaros canoros. Mesmo no verão,  o sol não chegava a cauterizar toda a vegetação, na qual se escondiam teiús, perdizes e codornas.

Como era a minha pequena cidade

O que era Traipu? Uma cidade à moda antiga, de ruas estreitas,   calçadas com pedra rachão, ou mantidas em terra batida e poeirenta; casas de biqueira, janelas de madeira maciça, sem venezianas. Nas ruelas secundárias predominavam residências de taipa, nem sempre rebocadas. Os nomes das ruas de outrora eram bem diferentes das atuais: Rua das Flores, Rua da Igreja, Rua Grande, Rua do Papouco. Os nomes dos amigos de infância guardavam sempre relação de origem com seus pais: Mitinho do Américo, Luizinho da Santinha, Zequito da Luizinha, Aurinha da dona Carminho. São retratos sem retoques e recordações de uma cidade do interior, de vida pacata e mansa, porém imagens bem vivas em minha memória.
Nas noites de lua cheia, coincidência ou não, o motor elétrico sofria defeito. A cidade ficava às escuras, e as famílias sentadas nas calçadas, colocavam em dia as modestas novidades e acontecimentos locais. Dentro da casa, os lampiões de querosene, os candeeiros e velas, garantiam as arrumações na hora de deitar.
A poucos metros dali, o rio São Francisco deslizava mansamente, voluptuosamente, e uns poucos afoitos arriscavam tomar banho à noite. Predominava o medo de piranhas (peixes vorazes) alicerçado nas muitas histórias de pessoas desaparecidas, nunca mais encontradas.
A cidade de Traipu, nos idos de 1940, foi testemunha de minha infância alegre e feliz. Durante o dia, após as obrigações da escola, braçadas no rio, em disputa de distâncias a serem alcançadas. Emolduravam esse cenário canoas com velas infladas, traquetes coloridos, canoas de tolda assim eram conhecidas. Para quem viajava nesses transportes fluviais a alimentação era especial, uma feijoada de tão bom  paladar que celebrizou a expressão ribeirinha: "tão gostosa quanto feijoada de popa de canoa".
Esse quadro não estaria completo se não fosse citado o novenário da festa da padroeira da cidade, Nossa Senhora do Ó, durante o qual transbordava religiosidade, animado por foguetórios, zabumbas, dobrados musicais e leilões.


A serra Tabanga, o rio e a canoa

Uma aventura no rio

Neste verão, lembrei-me de um episódio ocorrido em minha adolescência. Morávamos (eu e meu irmão Rui Medeiros) na fazenda Mata Verde, à margem do Rio São Francisco. Além de futebol, nossos esportes favoritos eram a pesca – como eram fartos os peixes e pitus àquela época! – e a natação à distância, sempre tentando superar limites anteriormente conquistados. Éramos adolescentes, vivíamos uma crise paranóica de auto-suficiência, cada um querendo ser dono do próprio nariz, sem medo de enfrentar riscos e obstáculos. A cidade mais próxima ficava a uma légua de distância (6 km) de onde nos encontrávamos, e o percurso era feito em canoas.
Julgávamos conhecer os segredos do rio e tínhamos confiança em sermos exímios canoeiros. Certa tarde comuniquei à minha mãe que íamos à cidade fazer compras, pilotando uma canoa à vela. Um “Não” foi a resposta; um “Não” redondo e definitivo. Explicou, que em algumas horas cairia uma trovoada; o céu já se tomava de uma coloração azul-chumbo e o rio ficaria perigoso durante a chuvarada. Tentamos convencê-la, em nada resultavam os argumentos.
            Desobedecemos, rumamos à cidade. Na volta – e já estávamos no meio do rio – desabou uma chuva torrencial, seguida de ventos fortes, que mais pareciam um furacão; os raios e trovões se sucediam. A vela foi arrancada violentamente, inteiramente destroçada. Desesperados, remamos com todas as nossas forças para alcançar a margem do rio. Entretanto, isso já parecia impossível. De repente, julguei ouvir a voz de minha mãe que me orientava: “Filho, tenha calma, deixe a canoa ser arrastada pela correnteza; é o melhor que você pode fazer”. Parei o que estava fazendo e segui o conselho recebido. O barco foi levado pela corrente impetuosa e depois jogado em terra firme, em local bem distante.
       O pensamento positivo e a energia da preocupação de minha mãe haviam transmitido uma mensagem à minha mente. Uma mensagem telepática.
            No dia seguinte (ela ainda estava uma “arara”) contou-nos que, no momento da trovoada, ajoelhou-se e pediu a Deus que orientasse seus filhos. Como penitência, acompanharia a “via-sacra”, de joelhos, nas semanas santas dos anos seguintes na cidade de Traipu.

As brincadeiras e seus encantamentos

Na minha infância tinha a curio­sidade de conhecer a fazenda de meus avós, chamada de "Saco dos Medeiros", situada à mar­gem do Rio São Francisco, 10 km rio acima do local que nasci. Du­rante um verão inesquecível, a bordo de um barco à vela, viajei até lá. Quedei-me mudo de emo­ção diante de uma casa grande no alto de um penhasco, de onde se divisa as curvas do trajeto do rio. Entro na sala: quanta emo­ção nas lembranças e reminis­cências familiares. Ali, reside um pouco da história de meus antepassados. Minha avó teve 16 filhos; não sei se recla­mava da extensão dessa tarefa. Ela era doce e meiga. O amor era a vitamina para todos os males do corpo e da alma. Renovava energias no contínuo trabalhar.
Brincadeiras infantis na fazenda: “Boca de forno, forno!” “Tirando bolo, bolo!” “Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar...” “O cravo brincou com a rosa, a rosa...” Eram cantigas entoadas nas brincadeiras infantis preferidas pelas meninas, ao anoitecer. A bola que os garotos jogavam interrompia as brincadeiras femininas, acredito que por ciúme de terem sido isolados dos folguedos. O rio corria lá em baixo, no barranco, uma imensa caudal de águas claras e de fortes correntezas.
Se a tristeza do entardecer emergia mística, de imediato palavras-mágicas eletrizavam a garotada com o anúncio: “Venham, a sopa vai esfriar!” E eles, por graça, repetiam: “Café com pão, bolacha não!”.
São inesquecíveis imagens que povoaram minha infância nos idos da década de 1940. O rio, ainda intocado, guardava as características da época do descobrimento. Não havia hidrelétricas, nem represas. Durante as enchentes anuais, as águas se expandiam por quilômetros e quilômetros além das margens, e, nesses alagadiços, plantava-se o arroz que garantia a subsistência de muitas famílias. E aí, veio a primeira grande agressão. As hidrelétricas de Sobradinho, Xingó e Itaparica absorveram parte das águas do rio. Era o progresso, levando iluminação a cidades e vilas, energia necessária ao consumo e à modernização industrial. Quem arriscaria insurgir-se contra o progresso? Entretanto, a partir daí, o rio minguou em largura e volume de água. Em algumas partes virou riacho. Nessa época, a melhor alternativa de locomoção dos ribeirinhos do baixo São Francisco era o transporte fluvial. O rio era o caminho natural; as poucas estradas existentes eram quase veredas.


A cidade vista do lado oposto do rio

A importância de Traipu e de Penedo

Traipu e Penedo marcaram minha formação e delas guardo recordações que me sensibilizam. Repito sempre de memória: O tempo não para, para onde eu vou, ele me segue, traçando meu destino, fascinante, im­previsível.
Nessa época, não havia escola secundária em Traipu, e os adolescentes emigravam para a cidade de Penedo. "Quem desce de barco o rio São Francisco, a poucos quilômetros de sua foz, tem a agradável surpresa de avistar, sobre enorme penhasco, uma fileira de casas coloniais de variadas cores, realçando sobre as águas verdes-amareladas do rio. É a cidade de Penedo, uma das mais antigas do Brasil, fundada por Duarte Coelho Pereira, que lhe deu esse nome, devido à sua situação geográfica. Perto do cais, destaca-se sobre o casario antigo a bonita igreja de Nossa Senhora da Corrente, preciosa jóia da arquitetura setecentista, com suas torres arredondadas e seu frontão barroco".
Faço minhas essas palavras da amiga Nilza Megale, porque assim vi Penedo nos idos da minha infância. Ali, aportei no navio Comendador Peixoto, uma embarcação a motor de médio calado, que realizava semanalmente o trajeto fluvial entre Penedo e Piranhas. Vim para Penedo a fim de fazer o curso ginasial. As estradas para Maceió eram precárias. Assim, o rio era o grande caminho, a via móvel dos ribeirinhos que buscavam complementos de instrução na cidade de Penedo, conhecida como "capital civilizatória do baixo São Francisco".
Já estávamos instalados nessa cidade, quando recebemos a visita de parentes há muito tempo residentes no Rio de Janeiro. Fui incumbido de passear de canoa com um jovenzinho carioca, recém-chegado. Ao voltar todos queriam saber se ele havia gostado da pequena viagem. A resposta foi breve e clara: "gostei, mas estranhei os marinheiros (canoeiros) sem farda, descalços, sem boné...".

A herança religiosa

Em um lar cris­tão tradicional, na cidade de Pe­nedo, onde fiz os estudos do antigo 1° grau, as quintas e sextas-feiras da Semana Santa eram motivo de respeito conforme os ensinamentos religiosos.
Numa quinta-feira da Sema­na Santa, já não recordo o ano, fui sorteado, entre os ginasianos, para participar da cerimônia ca­tólica do "lava-pés", em que o Bispo lavava os pés de 12 crianças que representavam os após­tolos de Cristo. Esse sorteio pro­vocou estranha agitação em nos­sa casa. Minha mãe, ciosa dos princípios higiênicos, achou que meus pés de jogador de futebol de rua eram sujos, maltratados e não estavam condizentes com esse ato religioso. Coitado de mim. Uma semana de suplício por conta: suspensão dos jogos de rua e, diariamente, obrigado a lavar os pés várias vezes com pedra-sabão; eles quase viraram espelho.
No grande dia, na igreja, ca­lor sufocante, metido em uma veste talar, aguardei o início da cerimônia. O bispo aproximou os lábios de meus pés. Um arrepio percorreu meu corpo; a herança religiosa falava mais alto.

A doação

“Quando partimos no vigor dos anos, / Da vida pela estrada florescente,/As esperanças vão conosco à frente, / Vão ficando atrás os desenganos!.../ Eu e o Rui, meu irmão, recitávamos esses versos do Padre Antonio Thomaz, em nossa adolescência e juventude. Esperanças e bom astral eram a tônica de nossos entusiasmos juvenis. Se a juventude não é apenas uma fase de vida, e sim, um estado de espírito tangido pelo sabor da aventura e da vontade de vencer, nós estávamos certos quando cultivávamos expectativas positivas de futuro.
            Minha mãe contava uma história poética que tem sido transmitida de geração a geração, cujo título é “Doação”. Não se conhecem o autor, a origem e o ano em que foi publicada. Faz parte da crônica oral das famílias, contou-me minha mãe. Decorei-a, e anos mais tarde, ensinei-a às minhas filhas, mantendo a tradição É uma historieta cheia de simbolismo, emoção e sentimento. Vamos conhecê-la.
“Amigo, faze o bem, esse prazer compensa a maior recompensa. Aqueles frutos saborosos que o teu vizinho colhe, às vezes, a cantar, custaram, com certeza, o trabalho de alguém que já sabia que nunca em sua vida os colheria, mas nem por isso deixou de plantar”. Minha mãe repetia que essa historieta deveria servir de modelo em nossa vida.

Um eterno retorno

Recentemente, voltei à cidade de Penedo. Cada vez que volto a Penedo repito um roteiro de sentimento e de recordações, ao visitar ruas, praças, igrejas e locais que povoaram minha infância e adolescência. São muitas lembranças guardadas com carinho nas gavetas de minha memória. Na rua do Rosário, continua intocada a residência do Monsenhor José Medeiros, Monsenhor Medeiros como era conhecido, um sacerdote dedicado às letras, ao ensino e à religião. Dele herdei o nome de batismo e o estímulo à leitura dos clássicos da literatura brasileira. Foi exigente comigo e com meu irmão Rui Medeiros: era obrigatória a leitura e compreensão de textos, que posteriormente deveriam ser repetidos para ele. Muito aproveitamos com esse método que ele utilizava.

O encaminhamento para medicina e os livros

Meu tio, o Monsenhor Medeiros, que sabia de meu interesse em realizar o curso de Medicina, dizia que medicina é, antes de tudo, a ciência do homem. Para ser um bom médico, seria necessário compreender a natureza humana, abeberando-se na cultura geral e nos conhecimentos humanísticos.
Acrescentava: “Não existe medicina sem cultura e sem filosofia”. De filosofia, nem imaginava o que seria; de cultura, supunha livros e mais livros e a estante da residência do Monsenhor Medeiros (tio do professor Medeiros Neto e meu tio) constituíam um desafio. Aprendi a amar os livros. A biblioteca de Penedo era o refúgio dos fins de tarde. E meu primeiro encontro foi com Monteiro Lobato: “Narizinho arrebitado”, “O Saci Pererê”, “Caçada de Pedrinho” e Emília, Dona Benta e Tia Anastácia, entes que povoaram minha imaginação.
Mas, devorador de livros, percorri – na biblioteca – obras valiosas: de Érico Veríssimo a Jorge Amado, de Machado de Assis a Eça de Queiroz, e tantos, tantos outros, desfilaram nos anos de minha permanência em Penedo.
Hoje, minha maior lembrança é o Rio São Francisco: canoas que dependiam do vento; minha linha e meu anzol que fisgavam peixes pequenos e grandes; o plantio do milho em 19 de março, dia de São José (chovia nesse dia); as festas coloridas de Bom Jesus dos Navegantes.
Se recordar é reviver, eu vivo as alegrias dessas lembranças.

 

Luiz Sávio de Almeida e Viviane Rodrigues. A Grota do Pau d’Arco I

 

Viviane na Grota do Pau d'Arco

        Viviane na Grota do Pau d'Arco

domingo, 20 de julho de 2014

Urbanismo: Maceió: Grota: Pau d'Arco I: 2011




Esta matéria foi publicada no tablóide Contexto, Tribuna Independente, Maceíó, 13/11/2011

As fotos são de autoria de Viviane Rodrigues e há permissão para a publicação de imagem dos informantes

Um pequeno bilhete sobre Grotas 



      Segue outra história de grota e histórias de vida. É mais uma parceria entre Contexto e o Museu Cultura Periférica. As histórias das grotas se parecem; as histórias de vida dão o tom da singularidade e demonstram o genérico do processo de empobrecimento gerado pela organização da sociedade. A história das grotas, como história de pobreza alagoana passa no mundo negro. Contexto abraça a todo povo amigo e honrado da Pau d’Arco I. 

Uma boa leitura.



Sávio de Almeida




A história das Grotas do Jacintinho (II)

A Grota do Pau d’Arco I

Luiz Sávio de Almeida e Viviane 

Rodrigues




Viviane na Grota do Pau d'Arco
             A Grota do Pau d’Arco I é uma das mais conhecidas do Jacintinho e pode ser vista por quem passa pela Avenida Afrânio Lages, junto à entrada do Buganville. Pouco se percebe da complexidade de suas ruas e das características do terreno, demarcado pelo acidente geográfico  que os moradores chamam de o “buraco”, vala que foi se abrindo e dividindo o território em duas porções,  sem que tinham denominações diferentes: há uma unidade por eles demarcada, integrando e fazendo o que atualmente é conhecido como Pau d’Arco I. O buraco foi uma pequena vala, de mais ou menos 50 cm  e hoje, está de tal forma alargado que cabe um carro dentro;  um se projetou na sua fundura e ficou como monumento à incúria governamental. Na Grota existe área de risco, especialmente, para as casas que vão tendo o terreno comido, justamente, pelo alargamento do dito cujo buraco.
            
Ela é das mais antigas do Jacintinho;  pessoas que foram entrevistadas, moram ali a mais de 40 anos e já existia, formada a partir de um sítio de cujo dono não se tem notícia. Consta que era área desocupada e as pessoas foram chegando e construindo suas casas. Há uma coincidência profunda com a história da Grota da Bananeira. Ambas derivam de um sítio, embora a forma de aquisição de terreno tenha sido diferente, pois a Bananeira tinha dono em um de seus lados, o que fica voltado para o Reginaldo. 





A Grota do Pau d’Arco I  fica no final da Rua Santa Luzia, onde se localiza o Quilombo, que teima em sobreviver e conseguirá.   Nós podemos dividir a Grota em duas porções: a da Praça e a posterior em destino ao Reginaldo. Na altura da Praça, parece estarem as melhores construções e é a parte mais antiga da região. O Pau d’Arco I tem, portanto, desnível interno de condições de moradia, embora que não se pode falar de diferença de renda. A direção do Reginaldo tem casas em piores condições, mas isto não diferencia pela renda, parecendo que houve mais tempo de investimento nas residências da outra porção.
            Sua posição característica leva a que não se articule com outra Grota, em termos de divisa, desde que seu acesso é o Reginaldo e a noroeste se encontra a Avenida Afrânio Lages. A leste, correspondendo à subida da Santa Luzia, fica a Coronel Paranhos, a grande linha divisória do Jacintinho. O Pau d’Arco tem seu nome derivado de uma árvore que existia na região e que ficava na subida que vai dar na Afrânio Lages, área ainda hoje de baixa ocupação, pois a Grota começou a estruturar-se entre a vala e a Praça e ali adensou suas construções.
            No fundo, ao tratarmos da história das grotas, especialmente verificada a partir das histórias de vida, nós encontramos o que vamos chamar de  um padrão de ocupação e uma variação no que há de pessoal. Os processos biográficos são diferentes, mas o social tende a se repetir, pois é uma história, na verdade, que se faz entre uma pobreza a sobreviver e o poderio econômico urbano. Assim, por exemplo, a história do Pau d’Arco I se interliga à da Bananeira na questão da conquista de serviços pela comunidade.
Eis um traço das Grotas que aparece em todos os depoimentos: a tentativa de cerco ao poder para a conquista do mínimo de serviços: o que seria trivial aparece na história construída sobre o lugar e pelo lugar, como feito praticamente resultante de batalhas, de constância no pleito. É assim que surge a água, a luz. É como se os depoimentos ao falarem do coletivo estivessem demonstrando e acentuando os serviços públicos como sinal evidente da marginalização do território no contexto urbano, gerando a movimentação em busca de solicitações ao poder, Isto significa que a grota pelos depoimentos, entende que a marginalização urbana do território requer, para ser vencida, atitudes cooperativas e busca de representação política de seus interesses pela instituição de entidades que, via de regra, fracassam. 
            Como em toda e qualquer Grota, os moradores têm que traçar estratégias de sobrevivência e nelas, é possível, que o considerado legal pelo sistema não seja por eles entendido desta forma. Na verdade, o sistema manipula condições. Um exemplo está nos chamados gatos. A comunidade vem pleiteando a regularização do fornecimento de energia elétrica: não há uma resposta aos abaixo assinados, às solicitações, segundo é reclamado. No fundo, por uma questão moral, não são os moradores que se locupletam da coisa pública: ela é que é negada a eles que pedem a regularização e neste sentido, acontecendo o estranhamento jurídico entre um cidadão que precisa e um estado que nega. Além do mais, até mesmo eles são prejudicados, por não terem os triviais comprovantes de residência.  



           A penetração urbana dos evangélicos demonstra-se nas Grotas. Os crentes  formam um grupo identificado nas relações de vizinhança. A urbanização desigual contém a penetração das Igrejas em um território que era predominantemente católico e marcado pela presença do Padre Cícero e do Frei Damião, entes do cotidiano sagrado nordestino e dos pobres urbanos de Maceió. Em parte, o crescimento acontece em face do vazio dos serviços católicos, da impossibilidade de se multiplicar centros de agregação, do mesmo modo como acontece com os protestantes das diversas denominações. Parece acontecer maior flexibilidade de ação dos evangélicos do que por parte da Igreja Católica. Talvez uma das razões de perda católica, esteja na manutenção de solenizações que ficam longe do trivial simples do cotidiano local.
            Sem dúvida, as Grotas do Jacintinho resultam da  forma como a pobreza está articulada à economia urbana de Maceió. Os dois entrevistados cujas falas reproduzimos, são oriundos de outras cidades e um deles viveu o que vamos chamar de périplo urbano, passando por diversos bairros até assentar-se no Pau d’Arco, enquanto outro teve uma espécie de semi-diáspora familiar, com seus filhos retirando-se da área e depois regressando ao mesmo nicho de pobreza de onde se originaram.
            A Grota vive o que vamos chamar de medo do inverno; o que é chuva para eles se traduz em risco de vida; todo inverno é a possibilidade de problemas sérios, especialmente para os que moram nas vizinhanças da vala. O infortúnio coletivo divide a Grota em duas grandes porções: a de maior e a de menor risco no inverno e isto cria uma espécie de alerta coletivo para com as chuvas, e, possivelmente, interfere na solidariedade que sempre se pronuncia na desgraça. Por outro lado, o tempo da  chuva é de queixa quanto ao mau cheiro, em face das águas que passam a rolarem na vala.
            As falas são dramáticas.  Seu Alcides chorou durante toda a entrevista, revendo a vida que levou e o que passou. Existem, então, vidas-choro e a dele, sem dúvida é uma delas. Ele vem saído de Pilar, menino de doze anos de idade, caminhando em cima de um jegue até chegar em Satuba. Depois, foi a pé por Fernão Velho, até chegar a Jaraguá onde foi conviver com os ratos dos armazéns. Há, portanto, uma vida-choro a ser respeitada e a leitura deste número de Contexto requer o senso do outro, algo em profundidade, capaz não de lastimar a sorte, mas de entender que existe algo errado numa permissibilidade de sofrimento adredemente montada e arquitetada pela natureza das relações em torno do poder. Na fala de seu Manoel, identifica-se a natureza política de que sua vida é a de todos e para todos requer uma visão correta por parte do poder.
            Resta ler e sentir que o espaço é mais do que sua mecânica; ele contém os sentidos de vida e ela, a vida, aparece como revelação do drama humano que a história jamais poderia esconder ou esquecer, mas que a historiografia pode tentar.  Ao contar suas histórias de vida e a história do lugar, as pessoas demonstram como desejam aparecer historicamente. A história de vida ganha, portanto, uma expressiva posição no corpus documental científico.
A história urbana de Maceió ao se renovar, tem que partir em busca  desses conjuntos considerados marginais que não foram e nem poderiam ser considerados em clássicos como Craveiro Costa, o primeiro a nosso ver a transformar a cidade em matéria de análise, fora da linha almanaquista de Moira, Moura, Espíndola. Aliás, a primeira geografia médica trabalhada em Alagoas – e que foi dos meados do século XIX –, possivelmente pela sua ênfase no miasma, traça uma imagem das áreas pobres, o que não faz Craveiro e nem o Manoel Diégues Júnior que se anexa ao clássico.
Ela, a pobreza, emerge e começa a ficar clara, em um romance recentemente reeditado e escrito por Pedro Nolasco Maciel, anterior ao trabalho de Craveiro. Ele enxerga a distribuição espacial da pobreza que jamais poderia andar pelas grotas, pois parecem ser fenômenos da década de sessenta do século XX, quando se dá a intensa urbanização populacional no sentido de deslocamento da população do campo para Maceió e, nisto, a procura de sítios para a morada  por parte dos  empobrecidos advindos. No fundo, a perversa regra da urbanização que aconteceu, trabalha uma máxima: mora-se onde é possível morar. O que parece trivial fundamenta o axioma social que leva à formação das grotas, a casa na cavidade em obediência à topografia e aos critérios sociais que fazem a rejeição do local por segmentos de renda  mais alta e de melhor situação, portanto, na economia urbana.

Difícil será entender a grota sem vê-la  na perspectiva da economia política; elas não são um acaso, mas parte de uma circunstância global de desacerto estrutural da sociedade maceioense.  E são os  mesmos critérios que desacertam, aqueles que levam ao preconceito, na imensa confusão que patrocinam entre pobreza e criminalidade. É como se ali, na grota, estivessem os detestáveis bandidos, locais da criminalidade. Não é isso. Uma grota é uma terra de muito suor e de muita decência; não pode ser confundida com seus bandidos. Se confundir um espaço com seus bandidos,  ai de ti Maceió assaz pecaminosa...

 Faz tempo, andou em larga evidência, um tipo de antropologia que tratava de uma questão: a cultura da pobreza. Dela, metodologicamente, deu boa conta o Oscar Lewis, com poucos livros traduzidos no Brasil. A sua leitura é fantástica, tanto pela beleza de estilo quanto pela forma como sonda o mistério das famílias, os encontros e desencontros. Havia, contudo um problema: o pobre era culpado por ser pobre.  A cultura das Grotas pode ser uma cultura da pobreza, mas muito mais do que isto, é um processo histórico de empobrecimento. As Grotas são parte deste empobrecimento, do modo como as pessoas são tornadas pobres.
Este painel que pretendemos, ao mostrar a singularidade de cada vida demanda que elas não sejam vistas como fragmentos, mas como interligação; o vazio entre elas é aparente, todas se implicam não somente por estarem no meio da pobreza mas por um fato fundamental e simples: são as vozes narrando o empobrecimento que foi gerado em cada uma história de vida e isto nos permite definir a Grota de uma forma mais íntima a seu contexto: todas as Grotas são histórias de vida e elas significam a ideia de espaço. Elas se definem por conter vidas e estranhamentos no mesmo lugar.
As mudanças acontecidas na economia urbana de Maceió, parecem confirmar o papel que vem sendo estereotipado para as Grotas, colocando-as como local privilegiado da violência e da bandidagem. A montagem urbana foi especializando o território, restando para os pobres ocuparem as decidas do terreno. Não deve ser um termo recente, na caracterização das áreas de Maceió, pois, por exemplo, está consagrada a expressão no texto clássico de memória de Carlos de Gusmão, aparecido em 1970: Boca da Grota. Nova é a associação que se pretende fazer entre elas e a criminalidade, mas um passo injusto construído pelo preconceito que identifica pobreza com marginalidade: nem todos os pobres são marginais. Grota é um pedaço da cidade igual a toda cidade, menos na sua característica de ser pobre.
Ao que tudo indica, elas existem na medida em que a cidade sobe para o que era chamado de Jacutinga; antes deveriam existir apenas como acidentes físicos e, somente, depois, é que vão tendo o sentido de um modo específico de viver Maceió, derivado da urbanização que se acelera e ganha corpo a partir dos anos 60 do século passado.  Talvez, então, seja possível pensar que estamos diante de uma situação cinqüentenária e que, posteriormente, vai assumindo a condição de hoje, talvez – novamente a possibilidade – a partir de uns vinte anos de vida da intensa crise urbana de Maceió, representando uma Alagoas incapaz de suportar o peso do crescimento de sua população economicamente ativa e colocar Maceió como local de uma acelerada disputa pelo que não existe efetivamente: posto de trabalho.


Um pouco da história de vida do Seu 

Alcides






Nasci em 06 de setembro de 1930, em Manguaba no Pilar. Minha mãe morreu quando eu era pequeno; tive irmãos de criação.  Fugi de casa com doze anos, sai do Pilar porque não tinha mãe, vim só com um bocado de matutos que iam passando e pedi “Vocês estão indo para onde?”, “Estamos indo para Satuba!”, “Pode me dar uma carona no jegue”, “Sim!”. Deram-me, isso faz muito tempo, minha história é longa.
Cheguei em Satuba às cinco horas da tarde, de lá fui para Fernão Velho a pé. Caminhando cheguei em Jaraguá, entrei num armazém para passar a noite e no outro dia procurar meu rumo, mas acabei ficando por lá. Conheci uma senhora que me ajudou muito, fiquei dormindo com ratos, morcegos. O filho dessa senhora disse assim “Mãe, vamos ajudá-lo porque é trabalhador!”. Fiquei lá um tempo, depois chegou um rapaz e me levou para Ipioca para trabalhar com cal. Andei muito pelo meio do mundo ajudando os outros e me ajudando.
O meu trabalho era encher um balaio de pedra e subir uma escada... Deus sempre comigo! Meu pai e minha mãe sempre foram Deus. Eu não tinha para onde ir, o armazém era minha casa, dormia no almoxarifado no meio de pá, enxada. Ai chegou a idade de me apresentar no Exército, era uma fila de cem homens de um lado e cem do outro;  então chegou o tenente e o capitão , os que iam ficar, ficava, os que não iam para casa, no meu caso o armazém. Como estava adoentado fiquei internado no hospital do Exército. Quando fiquei bom o major me chamou “O senhor mora aonde?”, moro na Pajuçara, “Em qual canto?”, “Em um armazém”.
Trabalhava de dia e dormia de noite no armazém, depois o dono não queria mais pagar. Eu reclamei “Dr.º  Antônio se não pagar a gente direitinho vou embora”. Fiquei abusado com ele e pedi as contas. Sai de lá e fui para a casa de meu irmão em Ipioca, mas tinha indo para São Paulo. Encontrei um amigo que me chamou para sua casa, não queria ir : “Você têm filhos...”, não deu certo lá. Daí fui para a casa de uma prima na Garça Torta, Generosa o nome dela, já morreu.
Estou desde os doze anos a sofrer, aqui e acolá. Aí arrumei essa menina, estamos casados há 45 anos, tivemos doze filhos. Quando casei estava com 36 anos e ela 16 anos. Demorei em casar porque estava escolhendo, a obrigação do homem é namorar muito, namorei muito, e procurar a certa e a honesta. Hoje está difícil arranjar um casamento fixo.
 Quando vim morar aqui já tinha três filhos, os outros nasceram aqui. Aí em cima tinha uma senhora que dava assistência (parteira, VCR) muito bem, morava na rua do Arame, irmã Lurdes. Eu trabalhava na Socôco e morava na casa da minha cunhada lá em cima e que tinha esse terreno, perguntou se eu não queria morar, perguntei quanto queria e ela cobrou 500 cruzeiros. Paguei.
Isso tudo aqui era mato, um sítio. Só tinha três casinhas aqui em frente. Aqui comprei nove paus, arrodeie de lona e zinco. Fiz o barraco de lona, zinco e tábuas. Depois o pessoal começou a chegar para morar. O povo que veio morar aqui estava todo espalhado. Trabalhei muito, fazia serrão, trabalhava das cinco às duas da manhã. Entrava aqui com medo porque a gente tinha que se guardar.
Não tinha água aqui, íamos para uma cacimba aqui perto com água limpa. Minha mulher lavava roupa, pegava água para beber. A gente chamava os vizinhos, se reunia aqui na porta para conseguir o que precisava. Era eu, o Cícero barbeiro (morreu), a mãe de Teresa (morreu), muita gente já morreu. Hoje temos água e luz, mas agora tem esse buraco. Não havia esse buraco, eu atravessava. Essa água que passa que fez o buraco vem dessas ruas de cima. Aqui usava candeeiro para ter energia, falamos com a esposa do Suruagy e do Major Luís.
O fato mais alegre que aconteceu aqui é porque a maioria do povo é crente. É um povo que respeita Deus, que merece nossos maiores elogios. Deus não é menino, é um Deus, é poderoso! Nós não fazemos nada por ele, mas ele faz tudo por nós. Minha maior alegria é ele aqui (apontou para o coração, VCR).
Já teve fatos tristes aqui. Já tive a chance de vender essa casa, mas Deus não quis. Construí esse barraco, criei doze filhos, morreu dois: um afogado e o outro mataram. O que mataram foi porque procurou, se não tivesse procurado estaria vivo como eu.
Aqui tinha jaqueira, cajueiro, coqueiro. Tinha um pé de Pau d’Arco. Eu viajei e queria ter trazido um pé de Pau d’Arco, mas não consegui. Grota do Pau d’Arco porque tinha um Pau d’Arco.
A prefeitura fez uma escada ali no beco. Os dois presidentes da associação de moradores que teve aqui não fizeram nada, só souberam embolsar o dinheiro. Nunca teve escola, nem posto de saúde. Será que esse governador vai fazer? Eu duvido. O governador trabalha muito pela cidade, mas pela periferia não. Ele faz pelo recanto, para deixar o “mais ruim” no mesmo lugar: sem nada.






História de vida do Seu Manoel Henrique

Meu nome é Manoel Henrique, tenho 51 anos, nasci em São Luís do Quitunde, sai com dois anos e fui para Matriz de Camaragibe. Com treze anos vim com minha família toda para Maceió, meu pai construiu uma casinha aqui na Grota do Pau d’Arco. Meu pai trabalhava de vigilante, depois minha mãe faleceu e deu derrame nele. Hoje em dia meu pai vive cuidado pelos outros.
Quando cheguei para morar aqui a gente usava candeeiro com gás, aí foi tempo que começaram, faziam uma casa, depois outra, subiam no poste para fazer uma ligação, até hoje ficou por isso mesmo. Cada pessoa que fizer um barraco na beira do buraco só precisa ir num depósito, comprar 20 ou 30 metros de fio, paga cinco ou dez reais a um camarada que sobe e liga. Isso porque o governo nunca se importou com o lugar onde a gente vive.
A maioria das pessoas que moram aqui veio do interior. Antigamente o buraco estava mais estreito, então era mais fácil construir. As mulheres trabalhavam como doméstica, hoje ainda é assim. Trabalham ganhando menos de um salário e os homens de servente de pedreiro. Quando vim morar aqui não tinha profissão, comecei a trabalhar de servente, ai pensei que tinha que aprender  a profissão de pedreiro.
Se eu medir essa casa minha só dar seis metros, mas tinha doze. A parede da minha casa estava na beirada do buraco, vejo a hora de dar uma chuvada e cair a metade da casa. No inverno nem dorme eu e nem minha esposa.
Esse esgoto começou ali na rádio 96 FM. Quando vim morar aqui nem uma rua dessa de cima era asfaltada, tudo de barro. Quando vieram asfaltar as ruas esse buraco já existia. Cícero Almeida, o prefeito, trabalha em frente ao perigo. Ele nunca foi um homem para vim aqui olhar o que esta acontecendo. Fizemos uma reunião para fazer um abaixo assinado, teve cerca de 40 pessoas, para levar a rádio 96 FM  e entregar na hora do programa dele. Ficou, vai, não vai, de 40 sobrou uns 15 ou 20, então não adianta porque se todas estão morando no perigo, tem que ir todas.
O serviço do interior é corte de cana, limpar capim, a minha profissão não bate com a do interior: pedreiro. Aqui em Maceió para onde me virar trabalho de pedreiro, faço minha semana, assumo minha casa. Morei dez anos em casa de aluguel, nunca atrasei na minha vida. Depois parei e pensei, vou comprar um barraco para morar. Comprei meu barraco na Via Expressa, depois fui morar no Benedito Bentes, passei sete anos lá. Voltei para o Jacintinho e fui morar numa vila que minha mãe tinha e esse buraco já estava largo, ninguém podia pular de um lado para o outro.
Nesse tempo teve vários prefeitos que, vinham e olhavam, o presidente da associação também e diziam que no próximo ano ia mudar. Vou dizer uma coisa a senhora: tá com uma faixa de mais de 30 anos que moro aqui, ai chega um candidato, entra na minha casa, olha e diz “Seu cadastramento está feito, no ano que vem o senhor vai sair daqui”. A situação cada dia fica pior e a gente não sai daqui. Minha casa tem uns seis cadastramentos, tenho casa “garantida” no Benedito Bentes, no Conjunto Carminha, no Conjunto Sorriso I e II, Eustáquio Gomes e nessa brincadeira estou aqui até hoje.
Quando voltei para morar aqui meus filhos eram pequenininhos, hoje tem 16 e 15 anos, estou vendo a hora deles se  casarem e eu ficar aqui. Eu não tenho condições de sair daqui e comprar uma casinha melhor em outro lugar, porque ganho apenas o salário. O salário que ganho só dar apara assumir a casa, tenho meus filhos com 15 e 16 anos, tenho que fazer tudo por eles, porque o perigo de um filho é nessa idade. Tem que ter o pai e a mãe em cima deles, senão vai na onda dos outros, ai termina dando prejuízo ao pai e a mãe. O que ganho é suado, não posso fazer minha casa. Se cair a parede do fundo vai ter que diminuir a casa, para frente não posso fazer mais porque é caminho. Isso aqui não é sobre eu, e sim todos.
Os moradores criaram uma associação, só teve dois presidentes. Se tiver seis ou sete anos é muito. O associado pagava três reais por mês, pagava para ver a melhoria da grota. Os moradores do Pau d’Arco é quem sabe o que está passando. A associação daqui vive parada.  Para comprar um barraco dentro do Pau d’Arco tem que pagar R$ 8.000,00 e viver na beira do buraco. Daqui a pouco ele chega na porta dela e não vai valer mais nada.
Tinha um camarada aqui da Associação de Moradores que todo ano quando batia o inverno chegava a minha porta com 30 ou 40 metros de plástico para revestir a barreira. Quando estava chovendo “emparava”, mas com dois dias de sol o plástico já se rasgava porque era fraco. Quando dá uma chuvazinha de duas ou três horas de relógio pesada a água sobe para mais de dois metros. É uma água fedida, preta, ninguém agüenta ficar dentro de casa.
O fato mais triste está com uma faixa de seis anos, estava aqui dormindo, começo do inverno, a barreira desabou, gritei: “Acorda gente que a casa está caindo!”. Metade da barreira caiu e os fundos de minha casa. A casa de minha irmã caiu e ficou na rua. Ela é crente, chegou às igrejas pediu ajuda, os pastores deram o material e eu tive que construir de novo no mesmo cantinho. Não teve um vereador, um deputado, um prefeito que dissesse se aqui caiu, não faz mais nesse lugar.
Não houve mudança aqui, continua do mesmo jeito. Para mim nunca houve nenhum fato alegre aqui. Cada ano que passa sonho em sair daqui para criar meus filhos, já tenho 50 anos. Quero deixar meus filhos num cantinho que não tenha problema, perigo. Eu não quero morrer e sabe que minha mulher e meus filhos ficaram na beira do perigo. O governador gasta milhões e mais milhões para construir um viaduto, deveria investir nas grotas.

História de vida do Seu Manoel 

Henrique

Meu nome é Manoel Henrique, tenho 51 anos, nasci em São Luís do Quitunde, sai com dois anos e fui para Matriz de Camaragibe. Com treze anos vim com minha família toda para Maceió, meu pai construiu uma casinha aqui na Grota do Pau d’Arco. Meu pai trabalhava de vigilante, depois minha mãe faleceu e deu derrame nele. Hoje em dia meu pai vive cuidado pelos outros.
Quando cheguei para morar aqui a gente usava candeeiro com gás, aí foi tempo que começaram, faziam uma casa, depois outra, subiam no poste para fazer uma ligação, até hoje ficou por isso mesmo. Cada pessoa que fizer um barraco na beira do buraco só precisa ir num depósito, comprar 20 ou 30 metros de fio, paga cinco ou dez reais a um camarada que sobe e liga. Isso porque o governo nunca se importou com o lugar onde a gente vive.
A maioria das pessoas que moram aqui veio do interior. Antigamente o buraco estava mais estreito, então era mais fácil construir. As mulheres trabalhavam como doméstica, hoje ainda é assim. Trabalham ganhando menos de um salário e os homens de servente de pedreiro. Quando vim morar aqui não tinha profissão, comecei a trabalhar de servente, ai pensei que tinha que aprender  a profissão de pedreiro.
Se eu medir essa casa minha só dar seis metros, mas tinha doze. A parede da minha casa estava na beirada do buraco, vejo a hora de dar uma chuvada e cair a metade da casa. No inverno nem dorme eu e nem minha esposa.
Esse esgoto começou ali na rádio 96 FM. Quando vim morar aqui nem uma rua dessa de cima era asfaltada, tudo de barro. Quando vieram asfaltar as ruas esse buraco já existia. Cícero Almeida, o prefeito, trabalha em frente ao perigo. Ele nunca foi um homem para vim aqui olhar o que esta acontecendo. Fizemos uma reunião para fazer um abaixo assinado, teve cerca de 40 pessoas, para levar a rádio 96 FM  e entregar na hora do programa dele. Ficou, vai, não vai, de 40 sobrou uns 15 ou 20, então não adianta porque se todas estão morando no perigo, tem que ir todas.
O serviço do interior é corte de cana, limpar capim, a minha profissão não bate com a do interior: pedreiro. Aqui em Maceió para onde me virar trabalho de pedreiro, faço minha semana, assumo minha casa. Morei dez anos em casa de aluguel, nunca atrasei na minha vida. Depois parei e pensei, vou comprar um barraco para morar. Comprei meu barraco na Via Expressa, depois fui morar no Benedito Bentes, passei sete anos lá. Voltei para o Jacintinho e fui morar numa vila que minha mãe tinha e esse buraco já estava largo, ninguém podia pular de um lado para o outro.
Nesse tempo teve vários prefeitos que, vinham e olhavam, o presidente da associação também e diziam que no próximo ano ia mudar. Vou dizer uma coisa a senhora: tá com uma faixa de mais de 30 anos que moro aqui, ai chega um candidato, entra na minha casa, olha e diz “Seu cadastramento está feito, no ano que vem o senhor vai sair daqui”. A situação cada dia fica pior e a gente não sai daqui. Minha casa tem uns seis cadastramentos, tenho casa “garantida” no Benedito Bentes, no Conjunto Carminha, no Conjunto Sorriso I e II, Eustáquio Gomes e nessa brincadeira estou aqui até hoje.
Quando voltei para morar aqui meus filhos eram pequenininhos, hoje tem 16 e 15 anos, estou vendo a hora deles se  casarem e eu ficar aqui. Eu não tenho condições de sair daqui e comprar uma casinha melhor em outro lugar, porque ganho apenas o salário. O salário que ganho só dar apara assumir a casa, tenho meus filhos com 15 e 16 anos, tenho que fazer tudo por eles, porque o perigo de um filho é nessa idade. Tem que ter o pai e a mãe em cima deles, senão vai na onda dos outros, ai termina dando prejuízo ao pai e a mãe. O que ganho é suado, não posso fazer minha casa. Se cair a parede do fundo vai ter que diminuir a casa, para frente não posso fazer mais porque é caminho. Isso aqui não é sobre eu, e sim todos.
Os moradores criaram uma associação, só teve dois presidentes. Se tiver seis ou sete anos é muito. O associado pagava três reais por mês, pagava para ver a melhoria da grota. Os moradores do Pau d’Arco é quem sabe o que está passando. A associação daqui vive parada.  Para comprar um barraco dentro do Pau d’Arco tem que pagar R$ 8.000,00 e viver na beira do buraco. Daqui a pouco ele chega na porta dela e não vai valer mais nada.
Tinha um camarada aqui da Associação de Moradores que todo ano quando batia o inverno chegava a minha porta com 30 ou 40 metros de plástico para revestir a barreira. Quando estava chovendo “emparava”, mas com dois dias de sol o plástico já se rasgava porque era fraco. Quando dá uma chuvazinha de duas ou três horas de relógio pesada a água sobe para mais de dois metros. É uma água fedida, preta, ninguém agüenta ficar dentro de casa.
O fato mais triste está com uma faixa de seis anos, estava aqui dormindo, começo do inverno, a barreira desabou, gritei: “Acorda gente que a casa está caindo!”. Metade da barreira caiu e os fundos de minha casa. A casa de minha irmã caiu e ficou na rua. Ela é crente, chegou às igrejas pediu ajuda, os pastores deram o material e eu tive que construir de novo no mesmo cantinho. Não teve um vereador, um deputado, um prefeito que dissesse se aqui caiu, não faz mais nesse lugar.
Não houve mudança aqui, continua do mesmo jeito. Para mim nunca houve nenhum fato alegre aqui. Cada ano que passa sonho em sair daqui para criar meus filhos, já tenho 50 anos. Quero deixar meus filhos num cantinho que não tenha problema, perigo. Eu não quero morrer e sabe que minha mulher e meus filhos ficaram na beira do perigo. O governador gasta milhões e mais milhões para construir um viaduto, deveria investir nas grotas.