quinta-feira, 30 de abril de 2020

Eduardo Bastos. A morte, os coveiros e nossa vida. Memória da pandemia nas Alagoas (XXIV)


A morte, os coveiros e nossa vida
Luiz Sávio de Almeida

          Sem dúvida alguma, Eduardo Bastos é um dos grandes analistas da vida das Alagoas, da mesma forma com o Leo Villanova, que abandonou os amigos e foi cuidar do virus. Neste trabalho,  Eduardo conseguiu trazer para nós, a triste e heróica saga dos coveiros que cavam, tiram terra, e ficam naquele insano, pontual, e fantasticamente necessário trabalho de preservar a paz dos nossos mortos, lá em baixo, em sete palmos de cova. Não fosse este coveiro que vive seus dias humildes, cuidando de nossa vida, o que seria de nós? Eu era molecote e li, parece que Mounir, falando sobre a natureza dos trabalhos e a importância do lixeiro vivendo a limpar uma cidade, se se ver constantemente  com o lixo. O coveiro não lida com o lixo, mas com algo que, sem saber, vivemos a esperar: o corpo sumindo no escuro que é a cova enfeitada ou rasa: não importa.
             Faz pouco tempo, o serviço funerário entrou em crise, Guyaquil. Eram tantos os mortos e tão pouco dos serviços, que corpos apodreciam dentro de casa, outros ficavam na rua. Os caixões de madeira sumiram: os mortos estavam postos em caixões de papelão. O coveiro vê tudo isto; vê as mães sem estar perto dos filhos, o fim dos velórios, da andada solene atrás do defunto levado em segurança, dor e lágrima para seu canto eterno. Poucos são os grandes testemunhos do que seja o drama humano das covas acoronadas.  Um dos que conseguem ver o fim, é o coveiro que Eduardo Bastos soube retratar vergado, com o peso das pés que de tantas, são apenas a do momento. 





















WILL GRIND. MCs contra o covid-19. Memória da pandemia em Alagoas (XXIII)




O começo e a razão deste projeto
Luiz Sávio de Almeida     
             
Começamos com esta postagem, uma série sobre o Corona virus e o mundo artístico do que vem sendo chamado de periferia. A nossa parceria, entre Will Grind e eu, vem de tempos e começou quando ainda era mantida uma coluna em O Jornal – intitulada  Espaço  –que depois se transformou em Contexto,  em a Tribuna Independente;  hoje é Campus,  no jornal O Dia.  Em nosso percurso inicial foram publicadas diversas matérias sobre a vida da periferia de Maceió, especialmente com a colaboração de Viviane Rodrigues e Railton da Silva.  Na verdade, esta nossa parceria com Vivi e Railton, nos levou a publicar sugestivos trabalhos sobre a riqueza cultural da periferia, sendo, sem dúvida, uma importante fonte documental para estudos no âmbito da história e das ciências sociais. Talvez seja o mais importante conjunto documental produzido sobre e com a periferia de Maceió àquela época, inclusive por depoimentos sobre a história do hip em Alagoas. Infelizmente, não realizamos a série sobre grafite e  reggae.
     É difícil dizer quais os trabalhos que foram mais importantes, eleger os que merecem realce, pois cada um no seu cada um, trouxe uma contribuição de primeira linha. Todos os três suplementos entraram por este mundo que era considerado como espécie de segunda categoria cultural, quando, na verdade, era e é de uma riqueza  extraordinária, como é a poesia dos mcs,  de difícil comunicação para quem não vive aquele universo cultural que não é hermético, mas que exige, no mínimo, cumplicidade com a estética e o entendimento de que o outro, o diferente, é bom, criativo, inteligente e capaz de produzir uma beleza rica em seus detalhes, especialmente quando se lida com uma nova descoberta do poético a expressar cotidiano e aspirações.
               
Os suplementos Espaço,  Contexto e Campus sempre estiveram abertos para a incorporação desta diferença e, também, sempre foram agradecidos à confiança que a periferia teve para com eles.  É de supor que a seriedade de nosso esforço e de nossos colaboradores sempre foi entendida e reconhecida pois, caso contrário, seria impossível realizar o trabalho que fizemos e estávamos inquietos para retomar, fazendo uma nova abordagem com o  Will Man,  com o Boka e a um homem de extrema importância em nossa percepção de produção na cultura da periferia, residente na Grota da Alegria: Seu Djalma. Passado um bom tempo, como estariam? O que houve de mudança na história de vida deles? E tantas e tantas outras pessoas que nos levaram à publicações,  contribuindo para uma nova visão do mundo das grotas e suas histórias.
                Muitas transformações aconteceram e,  no fundo, era todo um processo de circunstâncias que se fazia: o mundo sobre o qual fomos buscar a história –  especialmente, nesta área,  com a ajuda de Viviane e Railton –  e sua atualidade com o Will Grind, tinha de mudar.  O poeta e músico também teria mudado e, neste contexto,  sempre uma pergunta martelava:  o que aconteceu com o mundo do Hip-hop? E com o artista?   Agora Will Grind é um professor de matemática, mestre em meteorologia e doutorando na mesma área científica: o mc está  em plena carreira acadêmica e ainda pensaria em escrever suas rimas? Hoje é Mestre pela Universidade Federal de Alagoas, um centro de peso na área científica de sua escolha, graças, inclusive à dedicação do Lima que estruturou os começos do bacharelado e é onde se encontra, ainda, um dos grandes amigos meus: Ricardo Amorim.
Certa feita nos falamos e, então,  ou ele estava no caminho para a Federal em Campina Grande ou estava de saída para suas aulas. Não me lembro bem e não deu tempo para fechar o circuito.  Apenas, senti que seu tempo havia mudado e lamentei não renovar a antiga entrevista que com ele realizei e que gerou, pelo menos, dois números de Espaço.  Aliás, devo dizer agora, que Espaço existiu por conta de Gabriel Mousinho e Ellen Oliveira.
Passa tempo e recebo uma mensagem sua sobre um vídeo e começamos a conversar, foi quando nasceu a ideia deste projeto; eu já estava associado a José Carlos da Silva Lima  na operação de um outro que consistia em obter documentação e depoimentos sobre o virus em Alagoas.  Foi feita a proposta para a parceria e ele de imediato aceitou, nascendo um material que, graças a ele, começa a ser divulgado, quando então, a pandemia passa pelas mãos de mcs de Alagoas, dando margem a que falem sobre o que vivemos. O doutorando IWLDSON GUILHERME DA SILVAS SANTOS tem a mesma simplicidade das raízes de seu tempo; neste e em outros sentidos, é um homem admirável. A sua grande inteligência redirecionou a sua vida, mas não retirou a alegria de fazer as suas rimas e de conviver com o mundo dos mcs.
E as primeiras rimas que publicaremos são justamente de Will Man.



Quem é quem!

IWLDSON GUILHERME DA SILVAS SANTOS – WILL MAN

Professor de Matemática e mestre em Meteorologia pela Universidade Federal de Alagoas e atualmente discente de doutorado em Meteorologia pela Universidade Federal de Campina Grande no Estado da Paraíba. Vocalista da Babylon Fya (Rap com banda), pai de dois garotos (Ítalo e Arthur Guilherme) e morador do Benedito Bentes. Começou a fazer música alternativa na pista de skate do Biu,  primeiramente com a banda regional Anônimos da Sociedade Underground (ASU);  com a música Folguedo Popular de sua autoria participou do FEMUSESC. Após um determinado período, com a parceria do Allan FDC e algumas bases produzidas pelo Zazo no Kzebre Studio, lançou um CD de RAP com o título Procurados e Armados manipuladores de palavras com rimas gravado no Studio QG dos Manos. Este CD foi gravado de forma independente e vendeu mais de 500 cópias pelas periferias de Maceió. Participou do Coletivo Popfuzz,  associação cultural independente de Alagoas que promoveu o Festival Maionese e Grito Rock com eventos e shows memoráveis. 

MCs contra o covid-19


A pandemia na periferia quem diria que na temperatura do Nordeste este vírus não se cria.

Não é Fake News espalhada por todo o Brasil a quantidade de mortes já passa dos mil.

Este messias não faz milagre nem faria se fosse um padre mas tem o veneno do peixe bagre.

Expresse-se, aja como um presidente ajude a nossa gente começando pelos mais carente.

Auxilie a linha de frente de combate contra o Covid-19 sem EPI sofre, morre e nos comove.

Doença de rico direto do estrangeiro sem preconceito mata pobre, preto até atleta brasileiro.

Cova rasa e pessoal o cemitério não comporta, vala grande, funda em fila no mínimo conforta.

Aprender mais com o erro dos outros vamos seguir o exemplo dos países mais desenvolvidos.

Crescimento exponencial, estatisticamente falando não passamos por uma crise semelhante.

Número de infectados eixo das ordenadas (y) número de leitos do SUS eixo das abscissas (x).

Infelizmente a quantidade de casos indicam muito mais que uma gripezinha ou resfriadinho.

Álcool em gel o valor que se eleva ao céu demanda e procura capitalismo e sua face cruel.

Dever de todos não deixar que a curva de infectados iguale-se a curva do número de mortes.

Quem acreditar jornal, internet, presidente, governador ou cientistas eu acredito na ciência. 

No momento que vivemos não importa se este vírus veio do morcego ou laboratório chinês.

Corona Vírus mata mais que a guerra do Vietnã mente sã reza por dias melhores no amanhã.

Proteja-se, higiene-se, lave suas mãos com água e sabão fique em casa stay home meu irmão.

Neste momento é mais evidente o colapso total, a beira do caos nada normal apocalipse now.

Brasil sendo Brasil justiça investiga superfaturamento de mais de 60 mil respiradores artificiais.

Cuidar um dos outros e de nós mesmos, sabedoria, empatia são as armas contra a pandemia.


Nosso blog e o suplemento Campus do jornal O Dia agradecem a Will Man por ter tirado um pedaço de seu tempo de pesados estudos, para nos ajudar a divulgar as rimas de nossos mcs. O projeto sobre a memória da pandemia nas Alagoas é realizado em parceria entre José Carlos da Silva Lima e Luiz Sávio de Almeida. No caso dos mcs, a coordenação é feita por IWLDSON GUILHERME DA SILVAS SANTOS – WILL MAN.



Pelo amor de Deus, fique em casa!


Pelo amor de Deus, fique em casa

Minha gente, fique em casa. Eu não queria voltar a mexer com números, mas a coisa está feia. Veja os dados, de acordo com o excelente Boletim publicado pela Secretaria de Saúde do Estado de Alagoas. Para você ter uma ideia, no dia 25 deste mês, Alagoas se apresentava com 501 casos confirmados e cerca de 29 óbitos e isto significa uma taxa de letalidade 5,78% ou, grosseiramente, em cada grupo de 100 pessoas de caso confirmado, seis morreriam.  Quatro dias após, a diferença era de 270 casos, o que equivale a um crescimento de 35% e a taxa de natalidade era de 4,63%. Hoje, no dia 29,  comparado ao dia 28, se tem, 18% a mais. E dia dia 25 para 29, o crescimento de casos confirmados foi de 48%.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Maclém Carneiro. Degrau por degrau. Memória da pandemia nas Alagoas (XXII)



Degrau Por Degrau 
Maclém Carneiro
        Músico, compositor e cantor
          Eu não saberia precisar quando comecei o meu isolamento social. Só lembro que foi no dia seguinte ao primeiro decreto do governo do Estado, que estabeleceu a prerrogativa de pessoas “sexes”, como eu, serem liberadas do trabalho presencial. Imediatamente, vislumbrei uma das poucas vantagens de ter a tal de DNA e fui logo requerer essa ”benesse.” Nem me dei conta de que não era nenhuma bondade palaciana, e sim o fato de eu já estar no grupo de risco preconizado pela OMS. Ocorre que me tornei um misantropo de carteirinha, como cortejava há bastante tempo, porém, sem o sabor involuntário e amargo de uma pandemia. Enfim, não lembro quando comecei minha espera do tempo passar, porque uma das coisas que mais me chamam a atenção nesses dias é o fato deles parecerem absolutamente iguais, mesmo que estabeleçamos uma rotina diferente para cada dia da semana.
          No começo, em meados de março, resolvi radicalizar e só saia da toca para subir e descer nove andares pelas escadas do meu prédio e respirar outros ares, um tanto poluídos de odores amoníacos. Certamente, incentivaram minha ligeireza escada a baixo e a convicção de que pra descer todo santo ajuda. Mesmo assim, no primeiro dia, só consegui duas vezes. É bem verdade que ao final da atividade receei estar com um dos sintomas do coronavírus, de tanta dificuldade que eu tinha para respirar. Porém, fui resiliente, porque o que me impressiona na espécie humana é a capacidade de adaptação, para cima ou para baixo. Por isso, atualmente, desço e subo os nove andares seis vezes, todos os dias. O que dá um tempo razoável de atividade física, ao passo que, literalmente, me preparo para o campeonato dessa modalidade esportiva, bastante valorizada nos USA, antes do Osama detonar as Torres Gêmeas. Por enquanto, aqui, são 154 degraus, cada um com sua personalidade e detalhe específico. Às vezes, alguns me olham de baixo para cima, claramente apreensivos, à espera da pisada inclemente. No entanto, minutos depois, se vingam maldosamente, quando os miro do meu ângulo inferior, com o coração na boca, e eles riem de mim, gélidos em sua concretude, a espera do piripaque letal.     
          Embora já se configure um longo tempo sem o convívio e o abraço afetuoso dos poucos amigos e parentes queridos, a monotonia ainda não se abateu sobre mim e nem ameaçou minha rotina, com suas garras de lesma e bafo de preguiça paralisante, no meu latifúndio de poucos metros quadrados. Além disso, mesmo que os dias sejam miméticos em sua essência, a cena política do país e seus protagonistas ridículos não permitem monotonia. A não ser que não houvesse mais nenhuma possibilidade de contato com o mundo alheio ao 904, num blecaute das redes sociais e meios de comunicação. Aí sim, de bom grado, com muito mais intensidade, eu iria esperar o meu amor chegar, aprofundaria os meus colóquios diários com o Jipe (um felino manhoso que, espaçosamente, coabita meu espaço) e reforçaria a leitura e a escrita inconsequente, tão atávicas a mim e pré-pandêmicas.
          Pensando bem, talvez fosse esse o mundo ideal para mim. Um mundo pós-pandemia, onde as pessoas estariam a salvo dos fatos inusitados e acontecimentos esdrúxulos, escancarados pelas personagens em voga nesse nosso país dilacerado e sob o desabrigo de um excrementíssimo presidente virulento, tão letal quanto é o covidis-19 à vida humana.
          Exatamente agora, quando estou chegando ao ponto final desse escrito, sem precisar abrir a porta, me atinge o mais recente boletim da pandemia em Alagoas, que aponta 777 casos confirmados e 36 óbitos, num crescimento exponencial a caminho do pico. Penso em todos os mais pobres e vulneráveis, que ainda serão atingidos. Penso em todas as famílias que pranteiam seus mortos. Penso nas classes de trabalhadores que estão arriscando a vida no combate a essa pandemia e nos que garantem a comodidade do nosso recolhimento social e, finalmente, rogo para que esse desastre mundial sirva ao menos como ponto de partida para uma coexistência menos desumana, porque não creio mais na reinvenção da humanidade.
Mácleim (29/04/2020)  

Esta série tem por objetivo publicar depoimentos sobre  como se pensa e se lida com o Corona em Alagoas.  Está aberta a toda e qualquer pessoa, de qualquer tendência. É uma documentação organizada, sobretudo, para um futuro estudioso de como a epidemia foi vista e vivida em Alagoas. O material será publicado  paulatinamente no  suplemento Campus do jornal O Dia. Está sendo  organizado por Carlos Lima, Mestre em História pela Universidade Federal de Alagoas e Luiz Sávio de Almeida. O blog pode discordar de parte ou do todo da matéria por ele  publicada.





Victor Alves. A Pessoa e a missão do profeta: Resposta para a “pandemia”. Memória da pandemia nas Alagoas (XXII)




A Pessoa e a missão do profeta: Resposta para a “pandemia”
Victor Alves

Pastor da Primeira Igreja Batista de Capela, professor de Antigo Testamento no Seminário Teológico Batista de Alagoas e membro da @ligateologica.

O movimento profético é, sem sombra de dúvidas, o movimento mais surpreendente que se pode encontrar em todo o Antigo Testamento, pois tem sua culminância em figuras que se tornaram o centro de muitas das narrativas desta obra literária. Com suas expressões impactantes, muitos deles levavam mensagens de consolo, repreensão e arrependimento, como também tentavam ajudar o seu povo a encontrar uma razão para tudo o que acontecia. Em tempos de “pandemia”, essas respostas se tornam mais necessárias do que nunca.
Os profetas, a princípio, também eram pessoas que atuaram com grande relevância em vários momentos da história do povo de Israel. Diante disso, é preciso responder duas perguntas essenciais para entender tal movimento e, quem sabe até, encontrar uma resposta para nossa situação atual. A primeira pergunta é: “Quem eram os profetas”? A segunda: “Qual era a sua missão”? Respondendo a primeira pergunta, se percebe algo peculiar nos livros que levam os nomes desses que eram considerados “homens de Deus. Frequentemente, os profetas são identificados por seus nomes no começo de seus escritos, bem como pela data e o lugar em que ocorria a sua atividade. Por este fato, pode-se perceber que a pessoa histórica do profeta ocupa uma importância fundamental no que diz respeito a sua mensagem.
A maneira pela qual são anunciados os seus escritos ocorrem por expressões tais como: “A Palavra de Amós”, “A visão de Isaías”, onde sempre sua mensagem é associada à pessoa que a pronuncia. Outro fato importante é entender que os próprios profetas têm a consciência de que o Senhor Deus os chamou pelo nome. O nome de um indivíduo ocupa um lugar de extrema importância também para a narrativa, pois este nome está sempre associado ao caráter. Com isso, tem-se a ideia de que o profeta é alguém que foi chamado por Deus, mas esse chamado ocorre pelo nome, que implica dizer que aquele que os chamou, os conhece não apenas “de vista”, mas conhece tudo o que precisa conhecer, incluindo o seu caráter. Respondendo à primeira pergunta: Os profetas são homens chamados por Deus.
Entendido a questão da pessoa do profeta, precisa-se agora falar da missão desses grandes homens. Sobre este tema é preciso entender que eles têm uma profunda consciência de sua função e sobre isso o profeta Isaías afirma: “O espírito do Senhor DEUS está sobre mim; porque o SENHOR me ungiu, para pregar boas novas aos mansos; enviou-me a restaurar os contritos de coração, a proclamar liberdade aos cativos, e a abertura de prisão aos presos.” (Isaías 61. 1). A missão do profeta era anunciar a mensagem que Deus tinha separado para falar em determinado momento. Bem se sabe que a “instituição” do profeta não era exclusividade do povo de Israel, porém algumas coisas diferenciavam os atos proféticos de Israel das demais nações. Para o povo de Deus no Antigo Testamento, a profecia não se resumia a “premonições” (visto que esse ato era condenado pela lei Mosaica). Por outro lado, o profeta também não era uma pessoa que simplesmente falava a Palavra de Deus, mas, através de encenações dramáticas se tornavam a Palavra de Deus, pois faziam o papel que a Bíblia faz hoje para os cristãos. Pode-se exemplificar esse fato com uma ordem que Deus dá ao profeta Isaías que ele deveria andar nu durante 3 anos e 2 meses entre o povo de Israel (Isaías 20). Com isso, o Senhor queria enviar uma mensagem ao seu povo e o profeta se tornava a mensagem de Deus. Outro fato curioso é o que acontece com Ezequiel (Cap. 24), onde Ele diz que o profeta não poderia chorar no enterro de sua esposa, ensinando assim que Deus já não chorava pelo seu povo. Com isso, se percebe que a mensagem do profeta não se resumia a palavras, mas com suas atitudes dramáticas eles se tornavam a mensagem.
Por mais que esses textos tenham sido escritos há tanto tempo atrás, essas mensagens se mostram bastante atuais, pois através delas muitas pessoas têm superado males e encontrado o verdadeiro significado da “vida em abundância” que Cristo prometeu a todo aquele que crê. Levando em consideração que uma das missões dos profetas era ensinar ao seu povo uma razão para as dificuldades da vida, pode-se perceber que a mensagem nesses tempos de pandemia é altamente pedagógica para todos aqueles que buscam um sentido no sofrimento. Momentos como estes, segundo os próprios profetas, servem para renovar a nossa esperança naquele que realmente deve ser a nossa razão de viver, pois assim afirma o profeta Jeremias: “E há esperança quanto ao teu futuro, diz o Senhor...” (Jeremias 31. 17) A mensagem dos profetas renovam as nossas esperanças de que o Senhor está cuidando do futuro das nações e não existe melhor lugar para estar do que debaixo da proteção desse Deus amoroso.

Esta série tem por objetivo publicar depoimentos sobre  como se pensa e se lida com o Corona em Alagoas.  Está aberta a toda e qualquer pessoa, de qualquer tendência. É uma documentação organizada, sobretudo, para um futuro estudioso de como a epidemia foi vista e vivida em Alagoas. O material será publicado  paulatinamente no  suplemento Campus do jornal O Dia. Está sendo  organizado por Carlos Lima, Mestre em História pela Universidade Federal de Alagoas e Luiz Sávio de Almeida. O blog pode discordar de parte ou do todo da matéria por ele  publicada.







Paulo Felipe Almeida.O CRISTÃO E A PANDEMIA. Memória da pandemia nas Alagoas (XXI)














O CRISTÃO E A PANDEMIA
Paulo Felipe Almeida


 Formado em Teologia, pelo Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil (STBNB) –Recife -PE e pós graduado em Webjornalismo, pela Universidade Estácio de Sá. É também professor de teologia no SETBAL - Seminário Teológico Batista de Alagoas, onde leciona as disciplinas de Introdução Bíblica, Ética Cristã e Organização Missionária da Igreja. Além disso, é Produtor de conteúdo e Co-Fundador do Projeto Liga Teológica, que promove o diálogo entre Cultura Pop e Teologia.

A Pandemia do Coronavírus é uma situação que a maioria de nós jamais pensou que iríamos viver. Situações como essa são extremamente difíceis de assimilar, tendo em vista, tudo aquilo que está envolvido diante dessa doença, que afeta nossas vidas de várias formas: nossa saúde, nossa economia, nosso emocional, nossas relações pessoais etc. Praticamente todas as áreas da nossa vida são atingidas por tudo que estamos passando. Diante de um contexto como esse, como proceder, ou melhor, como viver?
Acredito que não teremos uma resposta pronta para isso, mas acredito que alguns princípios básicos podem nos ajudar durante essa fase custosa. O verso bíblico de 1 Coríntios 13:13 diz o seguinte: “Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor”. O escritor e estudioso da fé cristã, William Kelly, descreve a fé, a esperança e o amor como “princípios morais centrais característicos do cristianismo” e são justamente esses princípios da fé cristã que acredito ser a base para conseguirmos viver em meio à pandemia.
A fé é a certeza daquilo que não se vê. Há coisas que não se compreendem apenas com a razão, como é o caso do amor, que não pode ser explicado através da lógica. A fé que vem de Deus nos leva a experiências que nenhum elemento físico pode nos dar, pois a fé começa onde terminam as possibilidades, ou seja, ela não está limitada a possibilidades, ela invade o reino da impossibilidade.
Na fé, nós vamos encontrar justamente a esperança, afinal de contas, em tempos de tanta insegurança e incertezas que estamos vivendo com essa pandemia, são a fé e a esperança que vão alçar nossas possibilidades a uma paz que não vai acabar mesmo em meio a esse contexto de insegurança. Uma vez, ouvi dizer que são nessas circunstâncias que a esperança é como um raio de sol que brota mesmo no mais absurdo escuro. Isso me lembra de uma ilustração que gosto bastante: “Certa vez um rei encomendou a dois famosos pintores um quadro cuja temática fosse a paz. Além de garantir que iria comprar os dois quadros, o rei anunciou que daria um extra para o artista que melhor retratasse a paz. No tempo marcado, eles trouxeram suas pinturas. O primeiro retratava um lago sereno, espelhando altas e pacíficas montanhas à sua volta, encimado por um céu azul com nuvens brancas como algodão. Todos os que viram este quadro acharam que ele era um perfeito retrato da paz. O outro quadro também tinha montanhas. Mas eram escarpadas e calvas. O céu, ameaçador, derramava chuva e relâmpagos. Da encosta da montanha caía uma cachoeira espumante. Não parecia nada pacífica. Mas o rei, experimentado nas artes, olhou com vagar e viu ao lado da cachoeira um pequeno ninho numa fenda da rocha. Mamãe pássaro e seu filhote repousando em segurança. O rei escolheu a segunda. Sabe por que? Porque paz, explicou o rei, não significa estar num lugar onde não há barulho ou problemas. Paz é um estado de espírito. É a capacidade de estar no meio disso tudo e ainda manter a calma do coração”. A Fé em Deus e a esperança nos dão paz em meio a qualquer situação. Provavelmente, vamos reclamar, vamos chorar e vamos sentir angústia em determinados momentos, mas a esperança nos dará força para superarmos esses sentimentos, uma vez que ela nos dará a certeza de que tudo isso irá passar. E é essa esperança que nos leva ao amor.
O amor é o maior dos princípios que o texto bíblico nos trouxe, afinal, o amor não é centrado em si mesmo. Quem inaugurou um Reino de Esperança foi Jesus Cristo, quando nos deu sua vida numa cruz para nos salvar! A maior mensagem do cristianismo é esse amor incondicional despendido a nós, sendo nós ainda imerecedores, reles pecadores; é um amor gracioso. O amor é o sentimento mais nobre, ele é insuperável não se tratando de algo que aliena ou cega, mas que ama “apesar de”, ou seja, é algo que conhece nossos defeitos e, ainda assim, decide amar. Não é a toa que os dois maiores mandamentos deixados por Jesus Cristo envolvem o amor. Veja o que Jesus disse: “Respondeu Jesus: ‘Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento’. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’” (Mateus 22.37-39). Talvez, esse seja o momento de demonstrar a todos esse amor ao próximo, exercitar mais do que nunca a empatia, não por ideologia, mas porque é mandamento de Jesus Cristo para nós que temos de que Ele é o nosso Salvador, que nos deu a esperança de uma vida plena ao demonstrar a prova maior de amor que este mundo já viu ao entregar sua vida por nós. Portanto, é nosso dever fazer o mesmo: “Nisto conhecemos todo o significado do amor: Cristo deu a sua vida por nós e devemos dar a nossa vida por nossos irmãos” (1 João 3.16). Em meio a todo esse contexto de pandemia, ser cristão é ter fé em Deus, esperança de que tudo vai passar e, acima de tudo, amar incondicionalmente o nosso próximo.

Projeto Memória da Pandemia nas Alagoas
Coordenação
Luiz Sávio de Almeida e José Carlos Silva de Lima
O blog pode concordar ou não, em parte e no todo, com a matéria publicada



terça-feira, 28 de abril de 2020

Ildney Cavalcanti. Pandemia rima com distopia – mas também com sinergia. Memória da Pandemia nas Alagoas (XXII)



Pandemia rima com distopia – mas também com sinergia
Ildney Cavalcanti

Professora e pesquisadora, Coordenadora do Grupo de Pesquisa Literatura & Utopia Fale/Ufal


Meia década atrás, ao arredondar meio século de vida, inaugurei um mini-livro, para registrar pelo menos 50 experiências inesperadas, marcantes, desafiadoras que a vida me apresentaria dali em diante. Era uma forma de me motivar a manter acesos o encantamento pelo mundo e a vontade de nunca desaprender o desejo. Jamais imaginaria que uma das entradas do meu livreto seria dedicada a essa experiência inédita e completamente imprevisível: o distanciamento social motivado pela pandemia do covid-19. Uma novidade assim tão ubíqua, invisível, potencialmente letal… enfim, tão radical, nos impõe, inevitavelmente, uma reavaliação em todas as esferas da experiência, pondo-nos cara a cara, se não com o inimigo, que é invisível, mas com as nossas próprias limitações e as dos outros seres – humanos e não humanos – com quem dividimos o planeta; e, certamente, também com a inexorabilidade da morte. Com sua onipresente destruição, o vírus potencialmente invade nossos corpos e indubitavelmente nos leva à autorreflexão.
Crise. Esta é uma das palavras que mais ecoam nestes tempos – juntamente ao já assimilado “jargão virótico”, que inclui epidemia, pandemia, quarentena, grupos de risco, contaminação, sintomas, testes… e também o eufemístico “isolamento social” (que torna o confinamento mais palatável). Sim, vivemos um momento de crise, mas não esqueçamos que esta que agora nos assombra é apenas mais uma: temos vivido, de fato, uma série de crises em sequência há décadas. Num brevíssimo apanhado, e considerando uma linha temporal que parte da segunda metade do século XX, muito rapidamente listo as crises ecológica, petrolífera, dos direitos dos animais humanos e não humanos, do patriarcado, do capitalismo, do neoliberalismo…  Nenhuma delas, porém, havia chegado ao ponto de paralizar o mundo. A contaminação pelo Corona vírus e as mortes dela decorrentes nos impeliram à permanência em nossos lares, muito literalmente trancafiando-nos em casa, fazendo-nos parar para pensar.
Para alguém que estuda as utopias e distopias da cultura, essa epidemia é uma distopia concreta, pois invade a história com seu poder aterrador, destruindo vidas e abalando “estabilidades” sociais. Apesar de não enxergarmos seu causador imediato, seu poder devastador se materializa diante de nossos olhos sob formas terríveis: jamais esqueceremos imagens como o cortejo de caminhões transportando corpos de vítimas na Itália; as valas abertas no cemitério Vila Formosa, em São Paulo; ou os cadáveres nas ruas de Guayaquil, no Equador. Enquanto escrevo, a mídia incessantemente expõe as – (in)críveis? – estatísticas de contaminações e mortes, que sobem exponencialmente no passo do girar dos ponteiros. Quanta dor. Quantas perdas de vidas, com suas ricas histórias, seus tantos afetos. Sim, pandemia rima com distopia, e o que se configura no limbo do presente evoca as mais sombrias ficções de mundos devastados, como o Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago; ou a trilogia MaddAddam, de Margaret Atwood, dentre tantas outras. A vida imita a arte e exibe uma face mortífera.
Nesses tempos sombrios e de acumulação de crises, lembro-me do chamado feito pela fabulosa escritora Virginia Woolf: “Think we must!” (Pensar é preciso.) Seres entocados que nos tornamos tão abruptamente, busquemos então pensar formas de resistir ao atual cenário de múltiplas violências. Temos visto acentuarem-se, nesta crise, distopias que já nos rondam não é de hoje: o descaso com a saúde pública, o espectro da eugenia, o colapso econômico, o preconceito trajado em suas múltiplas vestes – de gênero, de classe, de raça, de idade… E também assistimos aos “efeitos colaterais” sociais específicos desta pandemia: o desemprego, o aumento do feminicídio (e da violência doméstica de modo geral), as agressões sofridas pel@s profissionais de saúde, as violações dos rituais de morte, o nosso próprio desespero e impotência diante do monstro que hoje assume a nossa presidência (e de sua equipe). Em vez de sucumbirmos ao ambiente tóxico e, literal e metaforicamente, virulento que nos circunda, sejamos capazes de pensar rotas de sobrevivência e saídas possíveis, mesmo que pequenas, localizadas.
Pandemia também rima com sinergia, que me parece ser uma palavra importante neste momento histórico. Dos aprendizados como estudiosa feminista, destaco duas ideias bem básicas, mas frequentemente esquecidas: o pessoal é político e “sisterhood is powerful” (a irmandade é poderosa). Pensemos junt@s formas pelas quais este momento de “meta-crise” poderá nos tornar seres em coalizão, em relação com os outros seres como espécies companheiras, pela recuperação do nosso planeta doente, pela construção de uma pós-humanidade tolerante, harmoniosa e respeitosa do outro: o homo Sapiens já mostrou a que veio e não aceitaremos a repetição infernal das opressões. Façamos com que sinergias aconteçam: comecemos em nossas “cavernas” e, como pede Ítalo Calvino no comovente final d’As Cidades Invisíveis, abramos espaço para o que não é inferno.

Os coordenadores do Projeto Memória da Pandemia nas Alagoas agradecem a Joelle Malta pela ajuda que nos dá, realizando os contatos e organizando os textos em que aparecem nosso muito obrigado. Carlos José da Silva Lima e Luiz Sávio de Almeida se responsabilizam pelo Projeto mencionado. O blog pode discordar no todo ou em parte das matérias por ele publicadas.



Alexandre Ramos. Prefiro evitar o contato com certas notícias. Memória da pandemia nas Alagoas (XXI)


       
 

Prefiro evitar o contato com certas notícias
Alexandre Ramos
Estudante de Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas

Eu acordo entre 9h e 10 horas, mais tarde que o que eu costumava acordar antes da quarentena. Iniciei a leitura de um livro do sociólogo Zygmunt Bauman, Amor Líquido. Leio sempre pela manhã. Durmo à tarde, pós almoço, e tenho conseguido fazer exercício por 30, 40 minutos. Adquiri novos hábitos. Um amigo me indicou ouvir áudio books. Iniciei a experiência com Dom Casmurro, de Machado de Assis. Tem me feito bem. À noite, geralmente ocupo meu tempo no computador, ouço músicas ou assisto a séries. Também não costumava assisti-las, mais um hábito adquirido.

          Não lidar profundamente com a Covid-19 é uma estratégia de cuidado com a minha saúde mental, mas confesso que a ansiedade anda sendo uma amiga presente. Tenho me sentido inquieto. Eu não consigo me concentrar ou ficar parado num lugar. Fico entre o computador, o sofá, penduro a rede na garagem de casa, mas logo fico impaciente e irritado. Coloco música, mas não consigo ao menos ouvi-la até o fim. Tento ouvir outros ritmos, mas nem mesmo as músicas que mais gosto me acalmam. Volto para o quarto, tento me deitar. Depois vou à cozinha tentar comer algo, mas me percebo sem fome. Embora, eu me mova pela casa, eu me sinto paralisado, sem conseguir finalizar nada do que comecei a fazer.
Sinto que eu não consegui ainda uma boa dinâmica para vivenciar o que estamos passando, mas estou sabendo fazer redução de danos, o que já é um grande começo. Como, por exemplo: tirar um momento rápido do dia para ler os noticiários, correr das mensagens motivacionais e não me sentir inútil por não estar fazendo algum curso online ou uma especialização.
         A quarentena está fazendo com que a grande maioria das pessoas lide forçadamente com suas inquietações e para quem já exercitava isso, a demanda só intensificou. Não é fácil e a opção da fuga pode levar a gente para um caminho altamente inapropriado. Eu me encontro no processo de assimilar aos poucos, mas às vezes, o impacto é forte e junto com isso vem as incertezas que fazem eu pensar em todas as esferas da minha vida. Às vezes, sinto revolta e não vejo tanto uma mudança social como sendo apenas de forma positiva.
Algo que tem me afetado também, é ver o Brasil em meio à uma crise política durante uma pandemia. Esse fator potencializa muito o estresse e a irritabilidade em mim. Ver o posicionamento cruel do presidente, as posturas e as medidas que ele tem tomado para o país sem levar em consideração questões sociais e ver que muitas pessoas têm seguido o que é dito por ele, se colocando em perigo, gera em mim emoções muito fortes. Então, diante disso, prefiro evitar o contato com certas notícias.
No momento, vejo egoísmo das pessoas, uma ausência de conscientização para pensar no coletivo. Não somente nas medidas básicas para evitar aglomeração de quem pode ficar em casa, mas pessoas que pouco se importam de pensar em um futuro diante disso tudo. Futuro esse que seja mais justo e com menos desigualdade social, pois o coronavírus traz não só o risco de morte, mas um momento de pensar que tipo de sociedade estamos vivendo e querendo para todos, de forma espiritual, social e ambiental.
          

 Agradecemos a Joelle Malta por ter organizado esta série de depoimentos dentro de nosso projeto sobre a memória da pandemia nas Alagoas , conduzido por José Carlos da Silva Lima e Luiz Sávio de Almeida. O Blog pode discordar no todo ou em parte do teor dos textos que publica.

Magno Almeida. Um abraço de longe. Até logo, até quando. Memória da pandemia em Alagoas (XX)


Um abraço de longe. Até logo, até quando
Magno Almeida
Mestrando em Estudos Literários (PPGLL-UFAL), Professor de Literatura e Poeta.

Desperto. Sento na cama. Procuro os propósitos para iniciar o meu dia: dia que já é tarde. É inevitável não lembrar de Gregor Samsa – também eu tenho acordado depois de sonhos intranquilos –; ou do pensamento inicial do professor de literatura George, de Um homem só: “despertar começa com o dizer-se sou e agora”, ou ainda, a fatal Clarice Lispector quando diz “Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada.[...]”. Antes de colocar os pés no chão, respiro e digo que o dia é. Penso em mim, nos meus e nas minhas que estão distantes: nunca senti tanta saudade. Alimento os gatos, abro a porta do quintal para que tomem um banho de sol: seres aparelhados de liberdade. Ando pela casa. Intento lavar os pratos, organizar as sacolas de lixo, procurar roupa suja para lavar. Sinto um gosto amargo na boca, tomo um susto, penso ser um soluço, aparecendo como uma surpresa. Não é. Caminho no deserto e exercito a vontade dos bichos: plantas, dromedários, uma serpente de chifres, a lua: máquina de luminescência. Caminho no deserto e procuro o saber da água, a vontade do sonho vasto e azul: é ainda o início seco como a possibilidade dos olhos suspensos na fronteira dos gritos. É ainda manhã ou começo da tarde: eu não sei, mas ainda é.
            Entro no quarto com alguma comida na mão, fecho a porta, já faz calor. São quase sempre 13h ou um pouco antes disso. Inicio o meu dia quase sempre com a leitura de poemas escritos no Brasil, Portugal e agora na Catalunha, sobre o tempo, a geografia das coisas sem vida, o cisco no olho: a saudade é uma planta carnívora.
E eu vou penetrando pelo dia e sentindo na pele: tudo! Como dizer com tão pouco o universo? Eu quero correr daqui. Então, penso em cavalos. O que imagina um cavalo na sua velocidade? Patas, mandíbulas, a crina delineada no desespero do vento, sua musculatura: o movimento do sangue. Talvez os cavalos corram para o caminho daquilo ainda sem nome. Cada pata contempla a surpresa do futuro, até as traseiras que jamais passarão pelos caminhos já tocados. É um sonho ou uma filosofia sobre as coisas camufladas no tempo? Sinto o barulho, as vibrações, os galopes, o chão, a carne, a febre. A minha cabeça dói, tudo se mistura. Será seja um poema que me dei de presente de aniversário? Há poucos dias completei 32 anos. Tenho medo: o tempo passa e eu continuo a ser “umbigo e solidão”. Mas há uma certeza: na próxima vida quero ser um cavalo selvagem.
           Talvez tudo aqui seja um punhado de saudade me povoando, uma vontade de terminar aquilo que nem comecei, fagulhas de pensamentos: tudo se mistura.
         
O contato com o céu acontece pela janela do quarto. Olho o cheiro do céu: quero reinventar as nuvens, repensar uma poética do horizonte que sustente a beleza que inunda a maré dos olhos e diminuir o sentido da solidão, desmontando a fábrica de animais que morrem em silêncio, aqui perto, aqui dentro.
Às vezes, acordo querendo colocar pedras nos bolsos e afundar no rio Ouse, em 1941. Outras vezes me lembro de alguns versos do meu poema favorito da Beber que diz muito e sempre sobre o eu e o agora, porque tudo precisa ser poesia e a palavra é o corpo sagrado que nos chega pelo tempo: “deve ser perigoso/ esse gosto recorrente/ de incêndio na boca/ [...]queria um gosto bom, queria pernas/ pra sair correndo”.
Não sei do fim, prefiro seguir acreditando na beleza das palavras a nos atravessar, assim como faremos com o tempo: você e eu e nós, como as borboletas que já descobriram por agora como fazer e estão invadindo a cidade. Fico por aqui, não sei mais dizer sobre a ilha que me habita, quando queria eu habitar o mar e o poder alquímico da água salgada.

Preciso ir ficarei imóvel na tarde a olhar os gatos dormindo na cama, na mesa de trabalho, na cadeira com rodinhas. Não vou me culpar por não escrever o poema que representará a minha geração, nem sofrer com os filmes que não saberei discutir por não tê-los vistos, tampouco as séries, as lives nas redes sociais, os vídeos dos museus pelo mundo, os memes, as reportagens do jornal local com os dados atualizados, o retrato do medo. Ficarei aqui, sem culpa, enquanto penso no poema do Felipe, um amigo querido, sobre suicidas, pois todos eles serão perdoados: “[...] aqueles que não deram esclarecimentos/ [...] os eletrocutados; os embriagados;/[...] os que guardaram balas na boca ou no peito;/ os delicados, tristes, faustos, imperfeitos –/ todos os suicidas serão perdoados.
Um abraço de longe. Até logo, até quando.

Os organizadores desta série agradecem à Joelle Malta por ter colaborado na organização desta série. 
Esta série tem por objetivo publicar depoimentos sobre  como se pensa e se lida com o Corona em Alagoas.  Está aberta a toda e qualquer pessoa, de qualquer tendência. É uma documentação organizada, sobretudo, para um futuro estudioso de como a epidemia foi vista e vivida em Alagoas. O material será publicado  paulatinamente no  suplemento Campus do jornal O Dia. Está sendo  organizado por Carlos Lima, Mestre em História pela Universidade Federal de Alagoas e Luiz Sávio de Almeida. O blog pode discordar de parte ou do todo da matéria por ele  publicada.




Ponta Verde, Jatiúca e outros seis bairros de Maceió têm maioria dos casos confirmados de coronavírus (site G1)



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Joelle Malta. Tempos de vida, virus e isolamento. Memória da Pandemia nas Alagoas (XIX)



Tempos de vida, virus e isolamento
Joelle Malta
Atriz e contadora de histórias
 Abril, 2020
 Corona virus: tiempos de vida y aislamiento  Corona virus: temps de vie et d'isolement
       Corona virus: life and isolation times Corona virus: tempi di vita e di isolamento




Os últimos dias trouxeram a sensação de que tudo virou do avesso. E, virou mesmo. Dia desses, ouvi uma música de Caetano Veloso e um dos versos não sai da minha cabeça: “Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial.” Muito se tem falado sobre as mudanças do mundo, que nada será como antes e que estamos passando por uma transformação. Acredito que há uma nova ordem se estabelecendo, uma nova forma de viver, de conduzir os dias e de se relacionar com o outro, com a natureza, com o trabalho, com nossas escolhas de vida... Sinto que muitas e muitos de nós estamos desenvolvendo um novo olhar sobre o todo.
Eu estou isolada há mais de 40 dias. Passei quase dois meses em São Paulo e decidi ficar em quarentena assim que voltei de viagem. Fui surpreendida por uma forte crise de garganta que me deixou com 39 graus de febre e me fez cogitar a possibilidade de ter tido a covid-19. Mas não tive.
Nesse período, minha casa tem sido também meu abrigo, meu casulo. As paredes são testemunhas das minhas angústias, do medo, dos soluços ao despertar depois de um pesadelo às 6 horas da manhã, quando só consegui dormir às 4 horas da madrugada. Sim, sou mais uma pessoa que tem trocado o dia pela noite. Rotina e sono totalmente desregulados. A fim de organizar os meus dias, eu escrevi uma lista com uma série de coisas para fazer. Algumas, eu nem comecei. Outras, até iniciei, mas não consegui terminar. Surge com isso a estranha sensação de procrastinação. Estou sempre me sentindo como se estivesse deixando os meus planos para depois. Mas de algum modo, eu estou. Sobre isso não há muito o que fazer.
Minha casa também tem testemunhado meus momentos de otimismo, meu corpo dançante, os poemas lidos, os vídeos produzidos, o cuidado com as plantas, as brincadeiras com as minhas cadelas, meus sorrisos saudosos ao conversar com amigos e família. Aliás, a saudade tem feito morada em muitos de nós. Meus dias oscilam também entre o ócio e a necessidade insistente de ser produtiva. Já abro os olhos pensando no que eu tenho que fazer. É como se até ócio precisasse ser criativo o tempo todo. Há um lado positivo nisso, quando me sinto incentivada a tirar da gaveta alguns desejos profissionais e colocá-los em prática. Mas nem sempre é assim.
Boca seca, coração acelerado, impaciência, falta de apetite e outros sintomas me avisam que a ansiedade está me rondando. O que explica os dias que vi nascer. Não é somente estar isolada em casa que provoca essa miscelânea de emoções e sentimentos, mas todas as incertezas, as posturas e os discursos descabidos de quem tenta minimizar o problema, as imagens aterrorizantes ao redor do mundo, o número de mortos.
Em meio ao caos, entre um dia estranho e um dia bom, tento manter a calma embora seja difícil manter a sanidade em meio a tantas notícias ruins. Mudo dependendo do dia. É natural se sentir mais sensível em meio a esses acontecimentos. De uma maneira ou de outra, estamos vivendo um luto. A tristeza vai e vem. Faz parte do processo. Embora o estado de preocupação e melancolia prevaleça, ouço um chamado para me reconectar com minha alma, com meu eu, de me reinventar, de repensar alguns pontos e planejar novos passos.
Comecei a perceber que estar conectada o tempo todo estava me fazendo muito mal. Eu tenho me afastado dos jornais, das redes sociais, onde me percebi bem ativa. Ainda assim, é a tecnologia que tem nos ajudado a estar em contato com quem amamos, então, não tem como abdicar totalmente dela. A arte tem sido minha ferramenta para estar mais no mundo real e menos no virtual. Tenho conversado com outros artistas locais e de outras cidades do país trocando sobre o que temos sentido, vivido e pensado nos últimos tempos. As angústias, as dificuldades e a esperança são muito semelhantes. Há momentos mais melancólicos, momentos mais otimistas e seguimos nos fortalecendo.
Que tudo isso passe logo para que as angústias sejam breves!

Esta série tem por objetivo publicar depoimentos sobre  como se pensa e se lida com o Corona em Alagoas.  Está aberta a toda e qualquer pessoa, de qualquer tendência. É uma documentação organizada, sobretudo, para um futuro estudioso de como a epidemia foi vista e vivida em Alagoas. O material será publicado  paulatinamente no  suplemento Campus do jornal O Dia. Está sendo  organizado por Carlos Lima, Mestre em História pela Universidade Federal de Alagoas e Luiz Sávio de Almeida. O blog pode discordar de parte ou do todo da matéria por ele  publicada.