terça-feira, 28 de abril de 2020

Magno Almeida. Um abraço de longe. Até logo, até quando. Memória da pandemia em Alagoas (XX)


Um abraço de longe. Até logo, até quando
Magno Almeida
Mestrando em Estudos Literários (PPGLL-UFAL), Professor de Literatura e Poeta.

Desperto. Sento na cama. Procuro os propósitos para iniciar o meu dia: dia que já é tarde. É inevitável não lembrar de Gregor Samsa – também eu tenho acordado depois de sonhos intranquilos –; ou do pensamento inicial do professor de literatura George, de Um homem só: “despertar começa com o dizer-se sou e agora”, ou ainda, a fatal Clarice Lispector quando diz “Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada.[...]”. Antes de colocar os pés no chão, respiro e digo que o dia é. Penso em mim, nos meus e nas minhas que estão distantes: nunca senti tanta saudade. Alimento os gatos, abro a porta do quintal para que tomem um banho de sol: seres aparelhados de liberdade. Ando pela casa. Intento lavar os pratos, organizar as sacolas de lixo, procurar roupa suja para lavar. Sinto um gosto amargo na boca, tomo um susto, penso ser um soluço, aparecendo como uma surpresa. Não é. Caminho no deserto e exercito a vontade dos bichos: plantas, dromedários, uma serpente de chifres, a lua: máquina de luminescência. Caminho no deserto e procuro o saber da água, a vontade do sonho vasto e azul: é ainda o início seco como a possibilidade dos olhos suspensos na fronteira dos gritos. É ainda manhã ou começo da tarde: eu não sei, mas ainda é.
            Entro no quarto com alguma comida na mão, fecho a porta, já faz calor. São quase sempre 13h ou um pouco antes disso. Inicio o meu dia quase sempre com a leitura de poemas escritos no Brasil, Portugal e agora na Catalunha, sobre o tempo, a geografia das coisas sem vida, o cisco no olho: a saudade é uma planta carnívora.
E eu vou penetrando pelo dia e sentindo na pele: tudo! Como dizer com tão pouco o universo? Eu quero correr daqui. Então, penso em cavalos. O que imagina um cavalo na sua velocidade? Patas, mandíbulas, a crina delineada no desespero do vento, sua musculatura: o movimento do sangue. Talvez os cavalos corram para o caminho daquilo ainda sem nome. Cada pata contempla a surpresa do futuro, até as traseiras que jamais passarão pelos caminhos já tocados. É um sonho ou uma filosofia sobre as coisas camufladas no tempo? Sinto o barulho, as vibrações, os galopes, o chão, a carne, a febre. A minha cabeça dói, tudo se mistura. Será seja um poema que me dei de presente de aniversário? Há poucos dias completei 32 anos. Tenho medo: o tempo passa e eu continuo a ser “umbigo e solidão”. Mas há uma certeza: na próxima vida quero ser um cavalo selvagem.
           Talvez tudo aqui seja um punhado de saudade me povoando, uma vontade de terminar aquilo que nem comecei, fagulhas de pensamentos: tudo se mistura.
         
O contato com o céu acontece pela janela do quarto. Olho o cheiro do céu: quero reinventar as nuvens, repensar uma poética do horizonte que sustente a beleza que inunda a maré dos olhos e diminuir o sentido da solidão, desmontando a fábrica de animais que morrem em silêncio, aqui perto, aqui dentro.
Às vezes, acordo querendo colocar pedras nos bolsos e afundar no rio Ouse, em 1941. Outras vezes me lembro de alguns versos do meu poema favorito da Beber que diz muito e sempre sobre o eu e o agora, porque tudo precisa ser poesia e a palavra é o corpo sagrado que nos chega pelo tempo: “deve ser perigoso/ esse gosto recorrente/ de incêndio na boca/ [...]queria um gosto bom, queria pernas/ pra sair correndo”.
Não sei do fim, prefiro seguir acreditando na beleza das palavras a nos atravessar, assim como faremos com o tempo: você e eu e nós, como as borboletas que já descobriram por agora como fazer e estão invadindo a cidade. Fico por aqui, não sei mais dizer sobre a ilha que me habita, quando queria eu habitar o mar e o poder alquímico da água salgada.

Preciso ir ficarei imóvel na tarde a olhar os gatos dormindo na cama, na mesa de trabalho, na cadeira com rodinhas. Não vou me culpar por não escrever o poema que representará a minha geração, nem sofrer com os filmes que não saberei discutir por não tê-los vistos, tampouco as séries, as lives nas redes sociais, os vídeos dos museus pelo mundo, os memes, as reportagens do jornal local com os dados atualizados, o retrato do medo. Ficarei aqui, sem culpa, enquanto penso no poema do Felipe, um amigo querido, sobre suicidas, pois todos eles serão perdoados: “[...] aqueles que não deram esclarecimentos/ [...] os eletrocutados; os embriagados;/[...] os que guardaram balas na boca ou no peito;/ os delicados, tristes, faustos, imperfeitos –/ todos os suicidas serão perdoados.
Um abraço de longe. Até logo, até quando.

Os organizadores desta série agradecem à Joelle Malta por ter colaborado na organização desta série. 
Esta série tem por objetivo publicar depoimentos sobre  como se pensa e se lida com o Corona em Alagoas.  Está aberta a toda e qualquer pessoa, de qualquer tendência. É uma documentação organizada, sobretudo, para um futuro estudioso de como a epidemia foi vista e vivida em Alagoas. O material será publicado  paulatinamente no  suplemento Campus do jornal O Dia. Está sendo  organizado por Carlos Lima, Mestre em História pela Universidade Federal de Alagoas e Luiz Sávio de Almeida. O blog pode discordar de parte ou do todo da matéria por ele  publicada.