quarta-feira, 13 de maio de 2020

Lúcio Verçoza. Cólera-morbo, coronavírus e governo mórbido. Memória da pandemia nas Alagoas




Cólera-morbo, coronavírus e governo mórbido

                                                                                               Lúcio Verçoza

[1] Doutor em Sociologia pela UFSCar, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFAL e autor do livro “Os homens-cangurus dos canaviais alagoanos: um estudo sobre trabalho e saúde” (Edufal-Fapesp, 2018).

            O vibrião era andejo. Corria a notícia de que o cólera já havia se espalhado pela Europa. Para impedir a entrada do mal que vagava pelo mundo, os países do outro lado do Atlântico reforçavam o controle dos portos. Mas o vibrião não tinha rosto, ele poderia entrar escondido no corpo de qualquer passageiro de navio ou até mesmo camuflado em um vaso de flores. O livro sobre As flores do mal ainda não existia, só seria publicado dois anos depois e logo em seguida estaria na lista de censurados. No entanto, ninguém precisava ler a poesia moderna de Baudelaire para desconfiar das flores ou do vento. Naquele tempo, tão distante e tão próximo, o medo falava por si. O miasma do cólera podia estar em qualquer lugar.
            Foi pelo porto do Pará que o cólera entrou. A embarcação, que partiu de Portugal com 322 passageiros, aportou no Brasil com 36 mortos. Rapidamente o vibrião errante desceu do navio e se espalhou pela cidade de Belém. As mortes começaram em questão de poucos dias. De Belém, o vibrião embarcou no vapor Imperatriz e desceu no cais do porto da Bahia. Na Bahia, a marcha do cólera-morbo foi de cidade em cidade até cruzar a fronteira de Sergipe. Os jornais noticiavam os passos fúnebres da doença em direção ao rio São Francisco. Diariamente era publicado o número de mortes que crescia de povoado em povoado, de légua em légua. Na outra margem do rio, os viventes das Alagoas o aguardavam. O cólera era o senhor do tempo, e as pessoas se amortalhavam antes mesmo da sua chegada.
            Antecipando-se ao maligno vibrião do cólera-morbo, o poder público da província agiu rapidamente. Dentre as primeiras providências tomadas pelas autoridades, estava a de abrir covas e ampliar os cemitérios. A população observava o “local das covas sendo abertos, numa espera do que se viveria”[1]. O primeiro caso confirmado em Alagoas foi o de um operário da indústria vegetal na cidade de Penedo, situada na margem do São Francisco. Os prefeitos das cidades vizinhas se apressaram ainda mais na conclusão da ampliação dos cemitérios. Após a confirmação do primeiro caso, o governo da província tentou isolar o cólera pelos lados do rio São Francisco. Foi traçada uma linha imaginária que proibia a circulação de pessoas em determinada altura da região de Coruripe. Todavia, o cólera não respeitava limites imaginários e, rapidamente, a epidemia se espalhou pelo restante de Alagoas.
            Somente em Penedo, que tinha uma população de aproximadamente 15.000 pessoas, estima-se que ocorreram cerca de 1.300 mortes. Os sinos pararam de dobrar, pois eram muitas mortes para poucos sinos. E mesmo assim, se insistissem em dobrar, o som quase ininterrupto dos badalos não deixaria a cidade dormir. Os velórios foram interrompidos, porque o vibrião continuava vivo nos corpos dos mortos. As covas tinham que ser profundas, de oito a nove palmos, para o cólera ser enterrado em local distante. O ritual das covas fundas consistia em enterrar o mal de um modo que ele nunca mais voltasse. Soldados eram requisitados para o transporte dos corpos em quantidade. A morte, antes vista como algo individual, assumia uma dimensão coletiva. Fermina Daza ainda não existia. Gabriel García Márquez ainda não havia nascido. Essa travessia do cólera pelas águas do rio São Francisco se deu nos fins de 1855.
            O ano seguinte começaria com a morte se espalhando de modo exponencial. A população escrava e de trabalhadores livres era a mais exposta ao cólera, no entanto, ao contrário do que imaginavam alguns senhores, o vibrião não era seletivo. Logo correram as notícias da morte de senhores de engenho, sinhás e crianças da casa-grande. Seus corpos, sem vida, ficavam tão murchos quanto os dos escravos que morriam desidratados no chão das senzalas. A marcha do vibrião não se orientava por cor de pele, posses ou sobrenome.
Na época, Alagoas contava com 22 médicos, 14 acadêmicos, 3 cirurgiões e 4 farmacêuticos. Eles também não estavam imunes ao cólera. Combatiam um inimigo desconhecido munidos de receitas de gotas de cânfora dissolvidas em colheres de sopa com água. Naquele momento a medicina ainda não conhecia a causa do cólera. Somente anos depois seria descoberto que o vibrião estava na água.
            O historiador Luiz Sávio de Almeida, em seu magistral estudo sobre Alagoas nos tempos do Cólera[2], afirma que a lembrança do cólera foi sendo apagada em seus contornos, a experiência vivida ao longo do tempo foi perdendo nitidez. Porém, em contrapartida, essa memória foi ficando mais firme na medida em que foi incorporada à cultura. É que, no fundo, “quanto mais a doença interfere no viver coletivo mais estará associada na memória, na recordação, e mais densamente estará na cultura que lhe é pertinente”[3]. É por isso que em Alagoas um rol de doenças ainda fazem parte do vocabulário cotidiano, como “peste bubônica”, “bexiga-lixa”, “gota serena”, “febre do rato” e tantas outras. A expressão “casa da peste” sobrevive como sinônimo de maldição, de lugar em que ninguém quer morar ou visitar. Trata-se de uma forma insólita de permanência do passado, de um passado tão horrendo e traumático que não pode ser completamente apagado.
Após o cólera vieram ainda outras epidemias. Graciliano Ramos nasceria décadas depois, no ano de 1892. Em 1915 ele perdeu três irmãos e um sobrinho, vitimados por um surto de peste bubônica. Hoje, é muito provável que alguns de seus descendentes usem “boba da peste” como interjeição e não saibam o porquê.
Para muitos povos indígenas o tempo é circular, como são os ciclos da natureza. Como bem nos lembram as avós e avôs de Julieta Paredes e de Adriana Guzmán: o passado está a nossa frente e o futuro está atrás de nós[4]. Nessa outra perspectiva de temporalidade, a epidemia do cólera de 1855 se entrelaça à pandemia do coronavírus de 2020. A história se repete, dessa vez, ao mesmo tempo como tragédia e como farsa.      
Conforme argutamente apontou Luiz Sávio de Almeida, toda a impressionante força desorganizadora do cólera, nem de longe, conseguiu arranhar a conformação do mando da época. Os senhores de escravos e de terras continuaram governando mesmo após a passagem devastadora do cólera-morbo. No entanto, em 2020, existe um novo elemento: não é possível combater os horrores da pandemia sem se contrapor a farsa do neoliberalismo e do estado mínimo. Não é possível lutar contra o avanço do coronavírus sem enfrentar o governo mórbido de Bolsonaro. Até seus ministros já perceberam isso e lhe desobedecem. Como dizem os povos Aymara e Quechua, o passado está a nossa frente. E, ainda que de modo tardio, chegou a hora de vencermos a tragédia e de nos libertarmos da farsa. Não fazer isso é ser aliado da morte.


[1]ALMEIDA, Luiz Sávio de. Alagoas nos tempos do Cólera. 3. Ed. Arapiraca, Eduneal, 2019 (citação da página 34).
[2]ALMEIDA, Luiz Sávio de. Alagoas nos tempos do Cólera. 3. Ed. Arapiraca, Eduneal, 2019.
[3]ALMEIDA, Luiz Sávio de. Alagoas nos tempos do Cólera. 3. Ed. Arapiraca, Eduneal, 2019 (citação da página 87).
[4]PAREDES, Julieta C.; GUZMÁN, Adriana A.. El tejido de la rebeldia. Qué es el feminismo comunitário? Ed. Comunidad Mujeres Creando Comunidad. Moreno Artes Gráficas, La Paz, 2014.

Projeto Memória da Pandemia nas Alagoas

Coordenação
Luiz Sávio de Almeida e José Carlos Silva de Lima
O blog pode concordar ou não, em parte e no todo, com a matéria publicada
Nosso objetivo é deixar um painel diversificado sobre a pandemia nas Alagoas

Amaro Hélio Leite da Silva. O Coronavírus e a Política Econômica da Morte; Memória da pandemia nas Alagoas







O Coronavírus e a Política Econômica da Morte

Amaro Hélio Leite da Silva

Professor dr. Do IFAL/AL, Coordenador do Neabi/Ifal


O vírus chegou – invisível e silencioso –, e com ele uma nova ordem mundial de convivência social e sanitária; ou será de desordem? Talvez seja para a nossa vida de trabalhador, mas não para a estrutura de mando político e econômico. Como toda doença nova, ela provoca medo, incertezas, prejuízos e mortes. É verdade que já vivíamos as incertezas e angústias geradas pela política ultraneoliberal do governo Bolsonaro, mas não imaginávamos que poderia ser pior. Que fazer? Não sei, mas parece que a razão e o bom senso dizem que o melhor é preservar a vida.
Vivemos a terceira semana de quarentena; a vida parece que tá de cabeça para baixo. A pandemia desorganiza, muda a rotina; só não muda a estrutura de mando, como bem lembrou o professor Sávio de Almeida no seu livro clássico Alagoas no Tempo do Cólera. A vida está em risco, um vírus impede a convivência aberta e mais próxima com o outro, pelo menos por um tempo ainda indefinido. Em nome da vida, precisamos ficar em casa.
Não podemos relativizar a morte dos idosos. Eles são a base da nossa formação familiar e social. Talvez o raciocínio egocêntrico do “capitão de Brasília” e seu capitalismo selvagem procure descartar os nossos anciões, como se eles já não tivessem mais utilidade e que a morte pelo vírus fosse inevitável. Não queremos perder nossos pais, avós ou os nossos queridos amigos de cabelos brancos. Com eles, aprendemos a viver e a ser gente, aprendemos a amá-los e queremos protegê-los. Os povos indígenas sabem disso muito bem, como afirma Daiara Tukano, “já que um dia todos nós voltaremos ao grande espírito e à mãe terra, a melhor forma de agradecer por essa luta [dos anciões] é dedicando a eles nossa reverencia, respeito, cuidado, carinho e ouvidos”.
Nesse contexto de pandemia, minha escrita parte de um lugar privilegiado. Sou professor-trabalhador, tenho uma casa, uma família e uma renda para garantir o meu isolamento. Na periferia de Maceió ou nas favelas do Brasil a realidade não é essa, pois sabemos que o desemprego, a falta de moradia e as péssimas condições sanitárias levam as pessoas desses lugares a buscar, obrigatoriamente, alguma forma de renda, e isto significa conviver diuturnamente com a incerteza do pão na mesa, com a violência, a doença e a morte.
Periferia e necropolítica
A covid-19 ou o coronavírus como é mais conhecido esbugalhou as nossas mazelas sociais e políticas; as mazelas da desigualdade social que concentra riqueza e gera um número crescente de pobres e miseráveis, que empilham os seus barracos nos morros e grotas ou vivem pelas ruas em busca de alguma migalha de alimento e abrigo. São as mazelas criadas pelo processo predatório de acumulação de capital e de consumo. O vírus é uma doença biológica, mas sua disseminação e seu poder de dizimação dependem muito da forma de organização social e política; sobretudo nas periferias onde a ausência dos serviços públicos essenciais leva os seus moradores a contraírem as doenças da miséria. É o que o pensador camaronês Achille Mbembe chama de necropolítica; ou seja, a capacidade que tem o poder de escolher quem pode viver e quem deve morrer, como atributos fundamentais da soberania.
Esta semana tive que sair para comprar pão na padaria; a rua estava mais ou menos vazia. No caminho, encontrei o Luiz, que vive realizando pequenos trabalhos (“bico”) pelas ruas da avenida Rotary, em troca de algum dinheiro. Perguntei como é que ele estava passando nesse contexto de pandemia. Sua resposta foi rápida: “Eu não tenho medo da morte; sei que a gente vai morrer um dia...” Ao se despedir, saiu com seu carro de mão e acrescentou: “Até mais seu Amaro, vou ver se consigo algum trocado por aí”. Sua fala demonstra a consciência da relação entre vírus e morte, mas, ao mesmo tempo, demonstra também o imperativo da necessidade de subsistência, que o obrigava a buscar alguma fonte de renda. Ele é um dos moradores das grotas da cidade, onde a linha entre a vida e a morte é tênue.
Semana passada, fui ao Jacintinho e, ao levar os meus pais para a vacinação contra a gripe, lembrei do Luiz. No caminho, vi as ruas bem movimentadas do bairro, sobretudo as ruas da ferinha, onde as pessoas vendiam e compravam de tudo, aparentemente, sem um mínimo de preocupação de contágio. Perguntei aos meus pais se era assim todos os dias, eles disseram que sim e, inclusive, eles próprios não estavam se importando muito com o isolamento, pois era besteira e que Deus os protegia. Foi difícil convencê-los, mas depois de muita conversa e vendo o avanço do número de contaminação e mortes, eles, agora, não largam o kit de proteção: máscara, álcool em gel, água, sabão e, o fundamental, ficam em casa.
Reinventando a vida
Em casa, fizemos uma reunião com os meninos para dividir algumas tarefas, mas não foi nada fácil. Na primeira semana, foi impossível, tudo era muito novo e incerto. Não sabíamos o que estava acontecendo e nem como lidar com o problema do vírus e do isolamento; não tínhamos hora certa para dormir, para acordar e tão pouco para fazer as refeições. A partir da segunda semana, começamos, de fato, a organizar a nossa vida doméstica. Passamos a estabelecer um horário limite para dormir e acordar, além de estudar e fazer as refeições. Os meninos reclamaram um pouco, mas terminaram cumprindo mais ou menos a nova rotina. O problema é que não dá pra exigir muito quando é difícil até pra nós que somos pais.
Chegamos a terceira semana mais organizados, porém ainda muito preocupados e ansiosos com a possibilidade de contágio e, sobretudo, com o nosso futuro. Eu e a Lu somos funcionários públicos e para nós – bem como para todos os trabalhadores – as perspectivas não são nada boas. Agora, tudo parece mais complicado e ameaçador.
Os analistas mais otimistas apontam para uma renovação da política econômica, um repensar da produção e do homem. Não sei se isso é possível. Só tenho uma certeza, a de que se continuar essa política predatória do Estado e da natureza, a vida continuará ameaçada pelo vírus e pela “economia da morte” de Brasília.

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