quarta-feira, 13 de maio de 2020

Amaro Hélio Leite da Silva. O Coronavírus e a Política Econômica da Morte; Memória da pandemia nas Alagoas







O Coronavírus e a Política Econômica da Morte

Amaro Hélio Leite da Silva

Professor dr. Do IFAL/AL, Coordenador do Neabi/Ifal


O vírus chegou – invisível e silencioso –, e com ele uma nova ordem mundial de convivência social e sanitária; ou será de desordem? Talvez seja para a nossa vida de trabalhador, mas não para a estrutura de mando político e econômico. Como toda doença nova, ela provoca medo, incertezas, prejuízos e mortes. É verdade que já vivíamos as incertezas e angústias geradas pela política ultraneoliberal do governo Bolsonaro, mas não imaginávamos que poderia ser pior. Que fazer? Não sei, mas parece que a razão e o bom senso dizem que o melhor é preservar a vida.
Vivemos a terceira semana de quarentena; a vida parece que tá de cabeça para baixo. A pandemia desorganiza, muda a rotina; só não muda a estrutura de mando, como bem lembrou o professor Sávio de Almeida no seu livro clássico Alagoas no Tempo do Cólera. A vida está em risco, um vírus impede a convivência aberta e mais próxima com o outro, pelo menos por um tempo ainda indefinido. Em nome da vida, precisamos ficar em casa.
Não podemos relativizar a morte dos idosos. Eles são a base da nossa formação familiar e social. Talvez o raciocínio egocêntrico do “capitão de Brasília” e seu capitalismo selvagem procure descartar os nossos anciões, como se eles já não tivessem mais utilidade e que a morte pelo vírus fosse inevitável. Não queremos perder nossos pais, avós ou os nossos queridos amigos de cabelos brancos. Com eles, aprendemos a viver e a ser gente, aprendemos a amá-los e queremos protegê-los. Os povos indígenas sabem disso muito bem, como afirma Daiara Tukano, “já que um dia todos nós voltaremos ao grande espírito e à mãe terra, a melhor forma de agradecer por essa luta [dos anciões] é dedicando a eles nossa reverencia, respeito, cuidado, carinho e ouvidos”.
Nesse contexto de pandemia, minha escrita parte de um lugar privilegiado. Sou professor-trabalhador, tenho uma casa, uma família e uma renda para garantir o meu isolamento. Na periferia de Maceió ou nas favelas do Brasil a realidade não é essa, pois sabemos que o desemprego, a falta de moradia e as péssimas condições sanitárias levam as pessoas desses lugares a buscar, obrigatoriamente, alguma forma de renda, e isto significa conviver diuturnamente com a incerteza do pão na mesa, com a violência, a doença e a morte.
Periferia e necropolítica
A covid-19 ou o coronavírus como é mais conhecido esbugalhou as nossas mazelas sociais e políticas; as mazelas da desigualdade social que concentra riqueza e gera um número crescente de pobres e miseráveis, que empilham os seus barracos nos morros e grotas ou vivem pelas ruas em busca de alguma migalha de alimento e abrigo. São as mazelas criadas pelo processo predatório de acumulação de capital e de consumo. O vírus é uma doença biológica, mas sua disseminação e seu poder de dizimação dependem muito da forma de organização social e política; sobretudo nas periferias onde a ausência dos serviços públicos essenciais leva os seus moradores a contraírem as doenças da miséria. É o que o pensador camaronês Achille Mbembe chama de necropolítica; ou seja, a capacidade que tem o poder de escolher quem pode viver e quem deve morrer, como atributos fundamentais da soberania.
Esta semana tive que sair para comprar pão na padaria; a rua estava mais ou menos vazia. No caminho, encontrei o Luiz, que vive realizando pequenos trabalhos (“bico”) pelas ruas da avenida Rotary, em troca de algum dinheiro. Perguntei como é que ele estava passando nesse contexto de pandemia. Sua resposta foi rápida: “Eu não tenho medo da morte; sei que a gente vai morrer um dia...” Ao se despedir, saiu com seu carro de mão e acrescentou: “Até mais seu Amaro, vou ver se consigo algum trocado por aí”. Sua fala demonstra a consciência da relação entre vírus e morte, mas, ao mesmo tempo, demonstra também o imperativo da necessidade de subsistência, que o obrigava a buscar alguma fonte de renda. Ele é um dos moradores das grotas da cidade, onde a linha entre a vida e a morte é tênue.
Semana passada, fui ao Jacintinho e, ao levar os meus pais para a vacinação contra a gripe, lembrei do Luiz. No caminho, vi as ruas bem movimentadas do bairro, sobretudo as ruas da ferinha, onde as pessoas vendiam e compravam de tudo, aparentemente, sem um mínimo de preocupação de contágio. Perguntei aos meus pais se era assim todos os dias, eles disseram que sim e, inclusive, eles próprios não estavam se importando muito com o isolamento, pois era besteira e que Deus os protegia. Foi difícil convencê-los, mas depois de muita conversa e vendo o avanço do número de contaminação e mortes, eles, agora, não largam o kit de proteção: máscara, álcool em gel, água, sabão e, o fundamental, ficam em casa.
Reinventando a vida
Em casa, fizemos uma reunião com os meninos para dividir algumas tarefas, mas não foi nada fácil. Na primeira semana, foi impossível, tudo era muito novo e incerto. Não sabíamos o que estava acontecendo e nem como lidar com o problema do vírus e do isolamento; não tínhamos hora certa para dormir, para acordar e tão pouco para fazer as refeições. A partir da segunda semana, começamos, de fato, a organizar a nossa vida doméstica. Passamos a estabelecer um horário limite para dormir e acordar, além de estudar e fazer as refeições. Os meninos reclamaram um pouco, mas terminaram cumprindo mais ou menos a nova rotina. O problema é que não dá pra exigir muito quando é difícil até pra nós que somos pais.
Chegamos a terceira semana mais organizados, porém ainda muito preocupados e ansiosos com a possibilidade de contágio e, sobretudo, com o nosso futuro. Eu e a Lu somos funcionários públicos e para nós – bem como para todos os trabalhadores – as perspectivas não são nada boas. Agora, tudo parece mais complicado e ameaçador.
Os analistas mais otimistas apontam para uma renovação da política econômica, um repensar da produção e do homem. Não sei se isso é possível. Só tenho uma certeza, a de que se continuar essa política predatória do Estado e da natureza, a vida continuará ameaçada pelo vírus e pela “economia da morte” de Brasília.

Projeto Memória da Pandemia nas Alagoas

Coordenação
Luiz Sávio de Almeida e José Carlos Silva de Lima
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Nosso objetivo é deixar um painel diversificado sobre a pandemia nas Alagoas