sábado, 19 de julho de 2014
Rio São Francisco: um texto de 1879
ROMARIZ, Antônio. Scenas do Rio de São Francisco
O velho Rio São Francisco
Luiz Sávio de Almeida
Não há como
negar o fascínio que o Rio São Francisco carrega com suas águas. e não
são poucas as horas, as tintas, os escritos que foram dedicados a ele.
Eu estava pesquisando um antigo jornal que circulava em Alagoas,
século XIX, e me deparei com uma crônica extremamente sensível e
escrita sobre ele. Era de autoria de Antônio Romariz. Achei interessante
o modo poético como trazia o rio e seus costumes e então resolvi
partilhar. O Orbe foi um jornal que começou a circular em Alagoas, no ano
de 1879. Saía segunda, quarta e sexta, sendo propriedade de José
Leocádio Ferreira Soares, tendo sua redação situada na Rua da Boa
Vista, 55, sendo impresso na Typographia Mercantil, que deveria sr do
mesmo proprietário, pois ela tinha sede no mesmo número da antiga Boa
Vista..
Quem ama o Rio São Francisco, irá sentir-se em casa ao palmilhar o texto.
http://www.joaodesousalima.com
Scenas Rio de São Francisco
Antônio Romariz
( Ao Sr. Guido Duarte )
O Orbe. Maceió. 23 mar. 1879.
Opara— chamavam
os aborígenes ao rio Francisco.
É um rio magestoso
o meu pátrio rio
Quem nâo o
conhece, ao menos, pela voz da fama?
A natureza
deu-lhe um lugar distincto entre os systemas hydrographicos do ímperio.
A portentosa
cachoeira de Paulo Affonso é o ponto luminoso, para onde convergém as vistas de
toda a Europa.
Magestoso rio !
Mollemente espreguiçado sobre o seu leito de areias,
estende os braços o gigante do norte, e num
estremoso abraço, a'
dormece,
soluçando beijos de espumas nos braços das cinco provincias que banha. São as suas
bellas amantes. Quando a lua cheia derrama sobre a terra as suas amphoças de
luz, o rio adormece, corno o somnambulo pela força de vontade do magnetisador;
uma boia de prata fluctua nas águas: é a lua que dorme a estremecer no espelho liquido.
O silencio
vagueia nos nos ares, no rio e no lago, no prado e no monte; apenas quebrado pelo chorar
da mareia nas ribas, pelo cahir das folhas seccas sobre as pedras dos morros,
pelo chiar e rangir da voga ou da zinga da canoa, que sobe a corrente, pela
cantiga do sertanejo, repassada de ternura, ungida de melodia, vaga como o
pensamento do cantor, que a concebeu; porque muitas vezes o homem
dos sertoes, o cantor d'essas trovas
tão nacionaes é um poeta, rude, é
verdade, mas original. A natureza é a sua amante a naturalidade, a sua arte. E,
no meio de tudo isso, o cahir das folhas
e a voz do sertanejo despertam os eccos dormentes das serras, nas quebradas.
De
espaço a espaço, as araras gargalham nos morros sobre os ramos dos angicos ou
dos mandacarús; a siriema solla uma escala chromatica, tão afinada, do grave ao
agudissimo e viceversa, que dir-se-hia uma clarinella tocada por musico exímio.
Mais
abaixo, sobre um penedo, a rainha daquellas águas mira-se enamorada nos
chrystaes do rio. E' a noiva d'aquelle sultão que deita a fronte nas Canastras e
lava os pés no mar.
Corramos
agora uma cortina sobre esses brilhos da lua.
É uma noite sem
estrelas.
O mar, do sua trompa oceânica tira sons roucos, como as tempestades o que veem
com os ventos tos das procellas morrer-nos aos ouvidos, sete léguas acima da foz,
ou antes, expirar no regaço da rainha daquellas
aguas.
Uma toalha negra
cobre a superfície do rio.
Para as bandas
do sertão, montanhas de nuvens cobrem os ceos, negras, como os demônios da
tradiccão.
De quando em
vez, uma estrellinha espia por entre uma fresta de nuvem, e dá um beijo de luz
no rio que se agita.
O relâmpago
abre-se, o ronquejar do trovão rola e rola e uma lingueta de fogo, tortuosa lambe as negridões.
É o raio que
brinca.
O S. Francisco reflete
essas imagens com uma fidelidade artislica.
Imagine o leitor
uma immensa chapa de prata polida, no
meio das trevas, e allumiada por um
incêndio de pólvora, e terá o relâmpago no S. Francisco.
O vento cresce
de forca; o rio cava-se; a chuva cahe a
principio do peneira; engrossa-se,
e chia sobre os telhados, as calçadas das ruas e sobre o rio e
o trovão ribomba: é a harmonia espantosa da trovoada,
Ao fusilar dos
relâmpagos, desenham-se as formas
fantásticas, enormes, negras, como a noite mesma:
são os morros o as serras d'alem.
No dia seguinte,
as negruras e aos furores da noite sucedem
os brilos de um ceo azul, franjado de brancas nuvens e dourado por um sol mais
claro.
As enxurradas
passam descendo as ruas da cidade heroica de uma extremidade á outra, como
cachoeiras taes, que impedem o transito publico.
As trovoadàS são
a origem das enchentes.
O Pajeú e o Moxotó,
dois tributários do S. Francisco, recebendo as copiosas águas dos céus, engrossam-se,
e as despejam aos pés .do grande senhor, que principia a entumecer-se.
Depois: as
chuvas sempre a crescer o rio sempre a engrossar,
arrojam-se às suas águas sobre a grande
penedia da cachoeira; esta por sua vez salta como um rebanho de alvíssimos
liões sobre o grande abismo do baixo S. Francisco e causando, segundo [...] um
estrondo que [...] muitas léguas, faz levantar uma nuvem de vapores, tão espessa,
que assemelha-se a rolos de fumaça de um grande incêndio.
Então, o rio
rompe as ribanceiras, pula o álveo, e inunda os campos.
Então, Penedo
está com as ruas baixas todas alagadas.
As canoas servem
de gondolas venezianas.
Os terrenos
adjacentes são um lago-mar!
Agora o prazer
das regatas.
Escaleres, canoas, jangadas, com as
velas pandas, e ornadas de bandeírolas de diversas cores, levam músicos, homens,
mulheres...
E partem. Os
vivas, os foguetes, a grita de alegria vêm morrer aos ouvidos dos espectadores das
margens.
São ãs regatas.
Mais tarde, o
prazer para muítos converte-se em desgostos em molestias.
O rio vasou. As
sezões, chamadas, tomam o seu lugar... Homem; palidos, mulheres descoradas; a moléstia
não escolhe; faz-lhes pagar os banhos nas ruas em noites de luar. . .
Bello espectaculo
na verdade o do S. Francisco transbordado I
Quando se poderá contar com o
auxilio do paiz para o impedimento das águas dentro da cidade?
E' interesse
publico; será preciso que amadureçam séculos?
O sol entrou em
capricórnio. O céu é de fogo, o ar é de fogo, o rio está como que incendiado. A
Tabanga, em frente á vila do Traipu, assemelha-se a uma enorme baleia á flor
d'agua e aí o calor é abafador.
O rio tem faíscas electricas á vista.
O sol reclina-se
sobre as ^montanhas da margem direita em frente á cidade heróica, dizendo o ultimo adeus ás águas, aos
montes e a cidade. O rio tem sobre si
uma toalha de pedras. O céu iria-se; as nuvens franjadas d’ouro e escarlate vão
passando em caravanas para o sertão; bandos de aves selvagens descem o
rio e somem-se para o mar.
O sol
escondeu-se. A claridade do sol sucede a claridade da lua. Os ventos suspiram
trazendo das vagas [...]