domingo, 10 de maio de 2020

Luciano Araújo de Castro.A pandemia, o outro e eu




A pandemia, o outro e eu

Luciano Araújo de Castro

Não seria exagero dizer que testemunhei o mundo mudar no dia e lugar onde tudo começou.
Depois de semanas ininterruptas de estudos em Lisboa, minha esposa e eu planejamos aproveitar um feriado para regressar à Itália, país de nossa lua de mel, agora com nossas crias. Aliando turismo e aprendizado do italiano, retornaríamos de lá com histórias, uns quilos a mais, vinhos e livros jurídicos na bagagem.
Nada disso aconteceu.
Desembarcamos na Lombardia em 22 de fevereiro de 2020. No aeroporto, uma recepção por agentes trajados tal qual astronautas para medição da temperatura corporal dos passageiros. Até então, ninguém esperava ser recebido na Bota assim. Sabíamos que havia um vírus causando preocupações na China, mas ali, naquele momento, percebemos que o perigo estava próximo. À noite, o noticiário italiano atualizava de hora e hora o número de infectados e mortos e isso era quase tão assustador quanto as cifras em si. O governo italiano já decretara o isolamento de algumas cidades. Decidimos retornar no dia seguinte. Compramos as últimas quatro passagens para Lisboa.
Foi um voo diferente. Poucos sem máscaras, provavelmente porque não as conseguiram. Era um fim de tarde aprazível, mas quase não se conversou, mesmo quem se conhecia. Os olhos arregalavam-se e as orelhas abriam-se ao som de uma leve tossida, agora prenúncio de ameaça. Nenhum de nós poderia adivinhar, mas além da encantadora Itália, era o próprio o mundo como o vivenciávamos que ia ficando para trás.
Dali a alguns dias não restou outra alternativa aos humanos a não ser aceitarmos a existência de um novo, grave e global problema, causado por um vírus do qual muito pouco conhecíamos. Conforme acontece de tempos e tempos, uma realidade inesperada impusera-se uma vez mais, fazendo pouco caso de projetos, cálculos e, há que se admitir, da velha soberba de esquecermos de nossa irremediável transitoriedade.
E assim foi que presenciei, pela primeira vez nos meus 40 anos, na quase velocidade de um filme, cenas outrora de pura ficção: séries de caminhões transportando caixões; estádios e shoppings transformados em hospitais; aeroportos fechados mundo afora; crianças, jovens e adultos sem aulas; Veneza vazia de gente, mas com golfinhos; rostos mascarados proliferando por todos os lados.
Permito-me acrescentar à essa lista um acontecimento do meu micromundo, revelador do novo momento: os mesmos idosos desconhecidos que antes acorriam para tocar e abraçar minhas filhas agora atravessavam a rua ou evitavam dividir o elevador. Foi algo doloroso no início (imagino que para eles idem), porém os compreendi totalmente, afinal, faziam parte do grupo de risco do COVID e as crianças eram a maioria dos sortudos infectados assintomáticos.
Na nossa humana ânsia de definir o porvir, os dias de 2020 são em parte consumidos em especulações de como será o pós-COVID. Espero que haja mais acertos que erros. Para minha paz (e alheia também), não me arrisco nesse exercício. Prefiro compartilhar uma lição crescentemente impregnada no meu espírito, extraída de tudo que ora nos ocorre: necessitamos do “outro”! É curioso isso porque, neste primeiro quarto de século, a voz do “outro” incomoda profundamente e o medo dele faz vencer eleições e pôr em xeque um sonhado projeto de união entre nações.
Por que as ruas vazias de Nova Iorque e as vielas desertas de Veneza chocam tanto? Porque falta ali alguém que não eu mesmo. Ninguém anda desejoso de transitar naqueles locais sozinho. Qual a razão de, havendo shows gravados na internet, aguardar-se ansiosamente o dia e horário das lives? Provavelmente por ser reconfortante saber que existe gente do outro lado, vivos comigo. Por que não é suficiente ficar em casa com as pessoas que nos são mais próximas? Não seria a falta do diferente a explicação? E, a propósito, não é unicamente a conduta do outro que, somando-se à minha, permitirá a contenção do vírus enquanto não chega a vacina ou o remédio? Por fim, não é a ausência dos demais que tem feitos os velórios tão mais tristes?
Não sei o caro o leitor que me acompanhou até aqui, mas, de minha parte, quando vier o pós-COVID, se eu for um dos agraciados de lá estar, eu quererei mais é ver, ouvir e vivenciar o outro, esse alguém que tanto me terá faltado.

Projeto Memória da Pandemia nas Alagoas

Coordenação
Luiz Sávio de Almeida e José Carlos Silva de Lima
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