sexta-feira, 1 de maio de 2020

Maria Cecília Pontes Carnaúba, A quarentena e os bandos. Memória da pandemia nas Alagoas (XXV)


A QUARENTENA E OS BANDOS
 Maria Cecília Pontes Carnaúba 
Doutoranda em Ciências Jurídico/Políticas pela FDUL (Lisboa, Portugal)
Temos vivido a tal quarentena que remete a qurenta mas, na verdade, é por período indeterminado. Dizem que estamos pressos mas não há prisão capaz de conter a infinidade de atividades que podemos desenvolver num mesmo espaço físico e, sobretudo, não há meios de aprisionar a nossa capacidade de pensar, criar, desenvolver habilidades, interagir, ser solidários e expressar amor. Então o que nos incomoda exatamente, nesta situação de afastamento social? O primeiro pensamento que me ocorrre é que estávamos habituados à ininterrupta tentativa de fazer o mundo e tudo que nele há, funcionar a favor de nossos interesses individuais, que escolhemos a partir de nossa baixíssima capacidade de percepção da realidade existencial, de nossa condição individual dentro da circunstância coletiva e sobretudo de nossa identidade: o que somos aos nossos próprios olhos? A que servimos? Que destino estamos imprimindo aos dias que se nos apresentam de presente? 

Modernamente, reduzimos o tamanho de nossas famílias, não moramos mais todos juntos, avós, filhos, tios e netos, achamos que esta forma de convivência dificultava os relacionamentos, cada um precisa fazer conformar o mundo ao seu modo de vida, começamos a considerar que as presenças afetavam nosso direito à privacidade. Afrouxamos os laços de convivência e os parentes que estavam conosco nas refeições e nas conversas do fim do dia passaram a ser vistos com dia e hora marcados, cada vez mais esporadicamente, perdemos a noção fundamental de bando original, a família em sua estrutura mais larga. Tentamos substituir essa convivência familiar pela convivência social mais adequada ao propósito comum de conformação do mundo aos nossos interesses. Como um grande número de pessoas convenciou que esta era a maneira adequada de viver, formamos um grupo imenso de pessoas com o modo de proceder semelhante, um bando substitutivo do bando original, a organização familiar inicial.

No bando original, estávamos mais próximos dos exemplos ancestrais que reforçavam a aceitação do outro, a tradição familiar favorecia da aceitação individual pela semelhança, portanto, os papeis que representavamos estavam mais vinculados a nossa realidade interna, a nossa essência, à verdade do nosso eu. No bando substitutivo os papeis, precisaram ser reconstruídos para atendimento da expectativa comum de conformação do mundo aos nossos interesses individuais, ganharam uma padronização de certo e errado de acordo com esse propósito, não havendo a partilha de emoções familiares a sustentar a aceitação mútua como no bando original, precisamos de padrões de certo e errado mais uniformes para sermos aceitos pelo novo bando. Nos afastamos muito da verdade do nosso eu para nos encaixarmos neste bando substituto, e o afastamento incluiu a supressão de atividades que destinávamos ao embelezamento de nossa essência como o tempo dedicado às artes, a leitura, à contemplação à comunicação com o divino e à convivência com os que nos eram essecialmente semelhantes e partilhavam a mesma história ancestral. Empobrecemos nossa esência, por falta de tempo. 

Talvez seja este o mal estar coletivo que tantos comentam, deixamos de ser quem somos e de estar com os que nos são semelhantes. A quarentena suprimiu os espaços para representação dos papeis destinados à conformação do mundo aos nossos interesses, desmanchou os palcos e, sobretudo, enfraqueceu os vínculos com o bando substitutivo, por isso emergiu uma sensação de abandono, no sentido etimológico da palavra: a – ban – dono, “a” prefixo de negação; “ban” indicativo de bando e “dono” referente a senhorio. A ideia de que resultamos abandonados, sem bando e sem dono, nasce porque nos afastamos do bando original e o bando substitutivo não existe mais tal como o vivienciavamos. A pandemia atual parece nos reconduzir ao bando original e à redução da convivência para nos restringirmos aos mais semelhantes a nós, semelhança é elemento que favorece a aceitação natural, se for assim, penso que tendemos a desenvolver papeis mais verdadeiros, mais próximos de nós mesmos.

 O hoje confirma que o mundo é naturalmente inconformista, é ele que estabelece as regras para desfrute da vida que ele generosamente nos presenteia, tomara que esta pausa nos habilite à humildade, à gratidão pelo seu acolheimento e generosidade para conosco, nos habilite à reverência incondicional à vida, ao embelezamento de nossa essência e ao reconhecimento da sacralidade da existência para merecer estar vivo .


Projeto Memória da Pandemia nas Alagoas
Coordenação
Luiz Sávio de Almeida e José Carlos Silva de Lima
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