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terça-feira, 28 de abril de 2020

Ildney Cavalcanti. Pandemia rima com distopia – mas também com sinergia. Memória da Pandemia nas Alagoas (XXII)



Pandemia rima com distopia – mas também com sinergia
Ildney Cavalcanti

Professora e pesquisadora, Coordenadora do Grupo de Pesquisa Literatura & Utopia Fale/Ufal


Meia década atrás, ao arredondar meio século de vida, inaugurei um mini-livro, para registrar pelo menos 50 experiências inesperadas, marcantes, desafiadoras que a vida me apresentaria dali em diante. Era uma forma de me motivar a manter acesos o encantamento pelo mundo e a vontade de nunca desaprender o desejo. Jamais imaginaria que uma das entradas do meu livreto seria dedicada a essa experiência inédita e completamente imprevisível: o distanciamento social motivado pela pandemia do covid-19. Uma novidade assim tão ubíqua, invisível, potencialmente letal… enfim, tão radical, nos impõe, inevitavelmente, uma reavaliação em todas as esferas da experiência, pondo-nos cara a cara, se não com o inimigo, que é invisível, mas com as nossas próprias limitações e as dos outros seres – humanos e não humanos – com quem dividimos o planeta; e, certamente, também com a inexorabilidade da morte. Com sua onipresente destruição, o vírus potencialmente invade nossos corpos e indubitavelmente nos leva à autorreflexão.
Crise. Esta é uma das palavras que mais ecoam nestes tempos – juntamente ao já assimilado “jargão virótico”, que inclui epidemia, pandemia, quarentena, grupos de risco, contaminação, sintomas, testes… e também o eufemístico “isolamento social” (que torna o confinamento mais palatável). Sim, vivemos um momento de crise, mas não esqueçamos que esta que agora nos assombra é apenas mais uma: temos vivido, de fato, uma série de crises em sequência há décadas. Num brevíssimo apanhado, e considerando uma linha temporal que parte da segunda metade do século XX, muito rapidamente listo as crises ecológica, petrolífera, dos direitos dos animais humanos e não humanos, do patriarcado, do capitalismo, do neoliberalismo…  Nenhuma delas, porém, havia chegado ao ponto de paralizar o mundo. A contaminação pelo Corona vírus e as mortes dela decorrentes nos impeliram à permanência em nossos lares, muito literalmente trancafiando-nos em casa, fazendo-nos parar para pensar.
Para alguém que estuda as utopias e distopias da cultura, essa epidemia é uma distopia concreta, pois invade a história com seu poder aterrador, destruindo vidas e abalando “estabilidades” sociais. Apesar de não enxergarmos seu causador imediato, seu poder devastador se materializa diante de nossos olhos sob formas terríveis: jamais esqueceremos imagens como o cortejo de caminhões transportando corpos de vítimas na Itália; as valas abertas no cemitério Vila Formosa, em São Paulo; ou os cadáveres nas ruas de Guayaquil, no Equador. Enquanto escrevo, a mídia incessantemente expõe as – (in)críveis? – estatísticas de contaminações e mortes, que sobem exponencialmente no passo do girar dos ponteiros. Quanta dor. Quantas perdas de vidas, com suas ricas histórias, seus tantos afetos. Sim, pandemia rima com distopia, e o que se configura no limbo do presente evoca as mais sombrias ficções de mundos devastados, como o Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago; ou a trilogia MaddAddam, de Margaret Atwood, dentre tantas outras. A vida imita a arte e exibe uma face mortífera.
Nesses tempos sombrios e de acumulação de crises, lembro-me do chamado feito pela fabulosa escritora Virginia Woolf: “Think we must!” (Pensar é preciso.) Seres entocados que nos tornamos tão abruptamente, busquemos então pensar formas de resistir ao atual cenário de múltiplas violências. Temos visto acentuarem-se, nesta crise, distopias que já nos rondam não é de hoje: o descaso com a saúde pública, o espectro da eugenia, o colapso econômico, o preconceito trajado em suas múltiplas vestes – de gênero, de classe, de raça, de idade… E também assistimos aos “efeitos colaterais” sociais específicos desta pandemia: o desemprego, o aumento do feminicídio (e da violência doméstica de modo geral), as agressões sofridas pel@s profissionais de saúde, as violações dos rituais de morte, o nosso próprio desespero e impotência diante do monstro que hoje assume a nossa presidência (e de sua equipe). Em vez de sucumbirmos ao ambiente tóxico e, literal e metaforicamente, virulento que nos circunda, sejamos capazes de pensar rotas de sobrevivência e saídas possíveis, mesmo que pequenas, localizadas.
Pandemia também rima com sinergia, que me parece ser uma palavra importante neste momento histórico. Dos aprendizados como estudiosa feminista, destaco duas ideias bem básicas, mas frequentemente esquecidas: o pessoal é político e “sisterhood is powerful” (a irmandade é poderosa). Pensemos junt@s formas pelas quais este momento de “meta-crise” poderá nos tornar seres em coalizão, em relação com os outros seres como espécies companheiras, pela recuperação do nosso planeta doente, pela construção de uma pós-humanidade tolerante, harmoniosa e respeitosa do outro: o homo Sapiens já mostrou a que veio e não aceitaremos a repetição infernal das opressões. Façamos com que sinergias aconteçam: comecemos em nossas “cavernas” e, como pede Ítalo Calvino no comovente final d’As Cidades Invisíveis, abramos espaço para o que não é inferno.

Os coordenadores do Projeto Memória da Pandemia nas Alagoas agradecem a Joelle Malta pela ajuda que nos dá, realizando os contatos e organizando os textos em que aparecem nosso muito obrigado. Carlos José da Silva Lima e Luiz Sávio de Almeida se responsabilizam pelo Projeto mencionado. O blog pode discordar no todo ou em parte das matérias por ele publicadas.



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