sábado, 4 de julho de 2020

Paula Barreto. DIÁRIO DA PANDEMIA. Breve relato dos 108 primeiros dias






História da pandemia em Alagoas: jornalistas
Coordenação: Elen Oliveira


DIÁRIO DA PANDEMIA. Breve relato dos 108 primeiros dias 

Paula Barreto, jornalista

No almoço, falamos sobre a Itália, que bateu o próprio recorde de mortos por dia. Digo que é a segunda população mais idosa do mundo. Minha filha, com 12 anos, pergunta: - A Itália tem pouco bônus demográfico, né mãe? - Silencio. Bônus Demográfico? Nunca ouvi falar. Pergunto: - O que é bônus demográfico, filha? Ela: - É quando tem mais pessoas produtivas do que pessoas idosas. - Aprendo. Acho graça.
A peste se avizinha e penso nas proporções que tomará por aqui, neste Brasil tão extraordinário quanto absurdamente desigual. Nos trabalhadores sem emprego fixo, em como vão aguentar o confinamento sem dinheiro e sem trabalho. É mais fácil vencer uma pandemia quando temos janelas abertas ao mundo, conexão trazida pelas possibilidades tecnológicas. Mas isso é para poucos.
Vejo o vídeo potente do Berinjela, um trabalhador negro, no lotado metrô de São Paulo, dizendo: - Isso aqui é o povo, vocês fecharam o cinema, fecharam o teatro? Sabe quem frequenta isso aí? É rico. - Começa a discussão sobre a necessidade de uma renda emergencial para a população mais vulnerável.
Na Itália, chegam médicos cubanos para combater o vírus. No Brasil, o presidente convoca as pessoas às ruas. Carreatas com carros de luxo, em várias cidades, incluindo Maceió, com a classe alta e parte da classe média pedindo que os trabalhadores, seus empregados, voltem ao trabalho. Com este mandatário, e com a trama que o mantém, me pergunto se elite brasileira seguirá, sem inconvenientes, contribuindo para o grotesco espetáculo diário? Temo que sim. O atual governo começou terminando com o Programa Mais Médicos, que deixou histórias maravilhosas de pessoas que nunca haviam tido um atendimento médico. E talvez não tenham outro.
Com o isolamento, há um aumento de borboletas voando pela cidade. Cuido das plantas. Não fossem outras mãos, estariam desidratadas. Sinto que estamos quase todos inquietos, nervosos, trancados em casa. Todo mundo com medo. Escrevo aos amigos distantes. Quero saber se estão bem. Pedir que se cuidem, que cuidem dos seus, que aguentem firmes. Trabalho remoto. Ouço Sérgio Sampaio: Simples, meu pai; faça um samba enquanto o bicho não vem; saia um pouco, ligue o rádio, meu bem; não ligue, que a morte é certa...
Noites mal dormidas. Desolação. Inércia. Prostração. Fazendo o indispensável. O trabalho é o marcador do tempo -  deste que a cada instante nos deixa mais próximos da morte - e organiza parte da rotina; me ocupa a cabeça; no modo automático, com um grau mínimo de eficiência a que me imponho. Tenho ojeriza à ideia de fazer parte da estatística de servidores públicos nos velhos moldes.
Sinto uma espécie de luto antecipado pelo que virá. Evito ler noticiosos. Saio de alguns grupos de WhatsApp. Dos memes. Da hipocrisia. Tento me distrair. Entre poucas e diferentes amigas, trocamos livros deixados nas portarias. Numa das devoluções, recebo um pacotinho de sementes de amor-perfeito. Enterneço. Ainda não plantei.
Começo a ler um livro e vários ao mesmo tempo. Termino um. Tento me conectar com o que, ao fim e ao cabo, nos humaniza e nos salva: arte. Vejo a divertida série espanhola La Casa de Papel. O bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao; questo fiore del partigiano; morto per la libertà. Pena que o matriarcado durou pouco!
A peste se acerca. Está com um amigo com 85% dos pulmões comprometidos, agora em casa; com os pais do colega de trabalho; com meus sobrinhos. Não vejo minha mãe há meses. Idosa e com Alzheimer. Nos falamos todos os dias. Optamos pelo isolamento. Por nós, por todos.
Nossa filha retorna às aulas, agora online. Evito pensar sobre. Serão algumas horas a menos de outras conexões. Estamos todos viciados. Nas últimas semanas, em dias intercalados, fazemos bolo, gelatina, brigadeiro; e assistimos juntas, com alguma má vontade minha, e sob protestos, algum dos infinitos vídeos de k-pop. Absoluta em nossas distrações domesticas é nossa gatinha. Entre os três, temos uma acirrada disputa por sua atenção. Mesmo com todos os carinhos, brincadeiras e bajulações, nos ignora solenemente.
Escuto Paco Ibáñez: Y había también un príncipe malo, una bruja hermosa, y un pirata honrado. Todas estas cosas había una vez, cuando yo soñaba un mundo al revés.
Quero acreditar que a solidariedade é mais contagiosa que o vírus. Que a epidemia talvez seja uma oportunidade para a sociedade olhar para si mesma e repensar a nossa existência, para que tomemos consciência do que disse Olga Tokarczuk, falando sobre a pandemia: Que a nossa ‘humanidade’ e excepcionalidade não nos separam do mundo. Permanecemos emaranhados nele como numa espécie de rede enorme, interligados aos outros seres através de invisíveis fios de dependências e influências. E que existem correlações entre todos nós. Não importa de que países longínquos provimos, que língua falamos e qual é a cor da nossa pele. Todos, igualmente, contraímos doenças, sentimos o mesmo medo e morremos do mesmo jeito. O vírus nos conscientizou de que não importa o quanto nos sentimos fracos e vulneráveis perante o perigo, há sempre, ao nosso redor, pessoas ainda mais fracas que precisam de ajuda.
Revejo o filme Bacurau, numa live do YouTube, com mais de 250 mil expectadores. Assisto ao filme Piedade, do Cláudio Assis. Salve o cinema pernambucano! Um amigo ganha o prêmio Sesc de literatura na categoria romance. Fico feliz! Vejo parte da live dos 78 anos Gilberto Gil. Anda com fé eu vou. A fé não costuma falhar.

Primeiro de julho de 2020. Greve dos entregadores por aplicativos. Lembro do filme Você não estava aqui, do Ken Loach, que vi no Arte Pajuçara, um pouco antes do início da quarentena. Triste, oportuno, necessário. Fala sobre a uberização da vida, dominada pela tecnologia, sobre a falsa ilusão de liberdade. Aceito o pedido inusitado do professor Sávio para fazer um breve diário da  pandemia. Escrevo.


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Thaís Lima dos Santos Pereira. POVOS INDÍGENAS DE ALAGOAS: DESIGUALDADE SOCIAL E EDUCACIONAL EM TEMPOS DE PANDEMIA. ONDE ESTÁ A EQUIDADE?


POVOS INDÍGENAS DE ALAGOAS: DESIGUALDADE SOCIAL E EDUCACIONAL EM TEMPOS DE PANDEMIA. ONDE ESTÁ A EQUIDADE?
Prof.ª Thaís Lima dos Santos Pereira
Professora colaboradora da comunidade indígena Katokinn

Saúde:a pandemia vista pelos índios
Coordenado pelo Professor Dr. Amaro Hélio Leite da Silva
-Coordenador do Neabi/Ifal


Passados mais de 30 anos da Constituição Federal brasileira, que garantiu em lei o direito dos povos indígenas no Brasil a uma educação escolar diferenciada e de qualidade, recebendo adjetivações como: específica, diferenciada, intercultural e/ou bilíngue, ela passou a ser tratada como política pública, como um direito de cidadania. Foi um feito extremamente importante, resguardando esses povos ideologicamente, suas memórias, culturas, tradições, filosofias e suas políticas. Cabendo à União a responsabilidade de proteger as populações indígenas.
Pensar em educação escolar indígena implica: refletir o projeto de sociedade que se quer; as formas de vida que se tem; e o espaço de ação que cada povo ocupa, sobretudo, é falar da escola como lugar onde o indivíduo vai refletir sobre seu contexto social; modificar realidades; produzir e desenvolver conhecimentos; aprimorar as capacidades para o exercício da cidadania, e lidar com seus próprios processos formativos. Foi assegurado o direito à diferença cultural, isto é, o direito de serem o que eram integralmente, pedindo o abandono da postura integracionista, onde à União sempre se procurou incorporar os povos indígenas ao todo. Mas, Educação Escolar Indígena Diferenciada (EEID) para quem? De acordo com a Funai, para mais de 300 povos indígenas, sendo que 11 povos indígenas em AL são eles: Kariri – Xokó, Xucuru- Kariri, Wassu, Tíngui-Botó, Aconã, Geripankó, Kalankó, Karapotó, Karuazu, Katokinn e Koiupanká.
Isso realmente vem ocorrendo no estado de Alagoas? Não podemos negar a presença dessa política pública entre os povos indígenas de Alagoas. Quanto às escolas diferenciadas, temos um quantitativo de 17 escolas indígenas, oferecendo aos seus povos modalidades que vão de educação infantil, ao ensino médio. Embora os povos Karuazu, Kalankó e Karapotó-Terra Nova venham há anos lutando por uma instituição escolar própria – apesar da grande abrangência das escolas nas comunidades indígenas do Estado –, constatam-se diversos problemas que dificultam seu pleno funcionamento com as precariedades físicas. Algumas escolas funcionam em centros comunitários, ocas ou casas cedidas. Dos 11 povos, apenas 5 povos possuem o mesmo padrão de estrutura física nas escolas, são eles; Xucuru-Cariri, Wassu, Kariri-Xokó Tíngui-Boto e Geripankó. Há uma larga distância entre o que está estabelecido na lei e o que ocorre na prática.
O Estado deve oferecer não apenas a igualdade de direitos na forma da Lei, mas a equidade desses direitos, acessibilidade nesse fazer pedagógico diferenciado, equidade que vem sendo negada. Temos um sistema que pouco se importa com o padrão qualidade físico dessas escolas, nesse sentido onde fica essa universalização com qualidade? E mesmo escolas indígenas com uma razoável estrutura física, vem por vezes sendo desvalorizadas, por uma sociedade que fielmente continua reproduzindo discursos racistas de que esses povos são burros, preguiçosos, chegando inclusive a duvidar dos avanços e sucessos que essas instituições alcançam. Nem sempre o acesso à educação torna-se garantia de uma estrutura adequada, e por vezes isso é um fator limitador de um fazer escolar com igualdade a nível estadual, mesmo sendo um fazer diferenciado.
Antes dessa pandemia creio que todos que tinham/têm interesse em discutir a EEID, vinham questionando quando escolas indígenas diferenciadas de AL iriam ter suas estruturas adequadas, ao ponto de oferecer um ensino a nível do que vem sendo orientado e solicitados pela Base Comum Nacional Curricular - BNCC? Com laboratório de informática, acessibilidades às mídias digitais que a BNCC aponta haver essa homogeneidade tecnológica em todas escolas do Brasil. Revelando mais uma vez a negação ao acesso a uma escola com uma estrutura de qualidade.
Então, nesse sentido, antes da pandemia já se tinha uma necessidade de igualdade de direitos, de equidade na estrutura física, para se alcançar essa universalização do ensino. Agora, estamos diante do processo de Regime Especial de Atividades Escolares Não Presenciais (REAENP), estabelecido pela Secretaria de Estado de Educação - SEDUC de Alagoas pela Portaria/SEDUC Nº 4.904/2020, que no Art. 1º estabelece nas Unidade de Ensino da Rede Pública Estadual, em todas as etapas e diferentes modalidades, enquanto durar a situação a Pandemia. Mas, a portaria não garante por si só o sucesso das atividades propostas. Estamos diante de uma digitalização forçada da educação escolar em tempos de pandemia. E o que nos preocupa no contexto da educação escolar indígena diferenciada são as particularidades de cada povo frente a esse método. Tenhamos a certeza de que esse processo, que pode ser uma boa alternativa, para os que têm acesso aos meios digitais, conseguintemente, surtirá em atraso no nível de aprendizagem dos estudantes, aqueles que não dispõem dessa acessibilidade, principalmente com relação às escolas indígenas.
Essa desigualdade, revela cenários onde o fique em casa é uma utopia, tendo que escolher se compra a máscara reutilizável ou o arroz para seus filhos, como exigir que as famílias se dediquem a educar seus filhos em casa uma vez que muitas mães, pais e responsáveis dormem sem saber se haverá o que comer amanhã? A solidariedade e empatia entre indígenas para com seus parentes é algo louvável, mas essa solidariedade não substitui em nenhum momento a responsabilidade do Estado com esses povos, que estão em suas aldeias, além dos outros povos que vivem nas periferias das cidades a mercê da sorte, há povos sem ao menos uma ambulância para o transporte dos seus parentes infectados, ou condições de isolamento, de testar seus parentes para detectar e isolar o vírus, assegurando a continuidade da vida em sua aldeia.
Um exemplo claro e simples, seria a distribuição de alimentos, que se faz necessária entre os povos indígenas, no sentido de que muitos povos ainda lutam pelo reconhecimento e demarcação de suas terras para plantar; outros têm terra, mas o fluxo de plantio em grande escala não faz parte da cultura indígena, que produz com qualidade e respeitando a natureza, além disso leva-se um tempo para plantar e colher. Muitos vivem de bolsa família porque não conseguem se auto sustentar sem-terra. Não vamos acreditar que a fome acabou com a chegada do bolsa família. Esses são problemas históricos de negação aos povos indígenas que emergem novamente, e o que é pior emergem em um cenário de pandemia. Minha percepção é que estamos em mais um cenário de abandono social, de negação dessa equidade apontada pela Constituição Federal. A pandemia está escancarando os problemas que já existiam antes dela. Pois esses povos estão justamente no grupo que precisa de equidade e não apenas igualdade.  Os povos indígenas não se resumem apenas em estatística, cada indígena que morre leva com ele seu histórico de ancestralidade, sua história e o futuro e permanência de seu povo que é único. Cada povo está tendo perdas significativas, isso interfere diretamente na transmissão de conhecimento no fazer da educação escolar indígena diferenciada.
Se o Estado não olhar para esses povos, a história irá registrar a deliberada omissão de socorro e de proteção aos povos indígenas do Brasil. Quero finalizar questionando: será que a falta de estrutura social, igualdade e equidade que garante a continuidade da vida desses povos indígenas de Alagoas, não é por si só uma violência?

Referências:

BRASIL. SEDUC. Portaria/SEDUC Nº 4.904/2020. Diário Oficial de Alagoas, Maceió, 07 de abril de 2020. Seção 1, p. 5.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 30 jun. 2020.

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