quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Maria Gabriela Cardoso Fernandes da Costa. O amor nos tempos da Covid-19: memórias da pandemia


O amor nos tempos da Covid-19: memórias da pandemia


Maria Gabriela Cardoso Fernandes da Costa


Esse texto foi escrito para o projeto “Tempos insulares: memórias da pandemia” do grupo de pesquisa Literatura &Utopia. vigésima sexta edição desse projeto.

 “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retina [...]. Agora, pois, permanceu a fé, a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o amor”. (Paulo de Tarso, 1 Coríntios:13).

Para início de conversa

Quando a proposta/ desafio foi lançada/o no grupo de Literatura e Utopia, há cerca de um mês, um pouco mais, talvez, de escrevermos sobre as nossas memórias nestes tempos de pandemia, o título de um possível texto, “O amor nos tempos da Covid-19”, logo me veio à mente. Entretanto, o tempo foi passando, dividido entre outras atividades, e o texto foi ficando para trás, mas não esquecido. Foi sendo trabalhado mentalmente e colocadas em pauta as razões que me levaram a pensar de imediato no romance O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez, como inspirador e as palavras de Paulo como coadjuvantes da inspiração, conforme a epígrafe que abre estas memórias.

Publicada em 1985, essa obra do premiado escritor colombiano, cuja ação se passa no período de transição do século XIX para o século XX, trata de uma relação amorosa que envolve as personagens Fermina Daza, Firentino Ariza e Juvenal Urbino e tem como pano de fundo o cólera, evidenciando uma situação que se assemelha à que vivemos neste momento de “convivência” com o Covid-19. De um lado, pois, na ficção, o cólera; do outro, no mundo real, o coronavírus, ambos iniciados com a letra “c”, como uma espécie de Sibila reveladora de tempos funestos. A distopia tomou conta do mundo assolado por aquela doença, da mesma forma que o fez dois séculos depois, quando o vírus passou a ser protagonista do nosso dia a dia. Se alterarmos a ordem dos algarismos romanos XIX e XXI, podemos ver que os dois séculos interagem entre si. Uma interação que tem como denominadores comuns o medo e a incerteza do dia seguinte.

Vivemos, nos dias de hoje, tentando manter o equilíbrio na corda bamba das diversas informações que perpassam a mídia e que nos chegam também através de mensagens pelo WhatsApp, umas apelando para a ciência, outras, não. Entre as antinomias do “fique em casa” x “vá trabalhar”; “use máscara” x “não use máscara”; “a hidroxicloroquina salva” x “a hidroxicloroquina mata”; entre a azitromicina, a ivermectina e sei lá quantas mais “inas”, somos uma espécie de náufragos buscando a “ilha desconhecida”, onde, talvez, nos seja possível encontrar certezas para as dúvidas (e os medos) que carregamos como bagagem.

“Quarentena”, uma das palavras-chave dos últimos tempos, foi o elemento desencadeador do relato destas memórias. Estou desde meados de março em completo isolamento. O fato de estar só não me causou nenhuma espécie de estresse – a palavra da moda –, nem sentimentos de desamparo ou solidão. Muito pelo contrário: tenho procurado aproveitar este momento da melhor maneira possível, liberta da famigerada desculpa “não tenho tempo”, que se tornou o refrão da canção do nosso dia a dia. E o Tempo deu-me mais tempo para olhar para mim e para os amigos e as amigas, ainda que os bons papos sejam apenas virtuais.

Nesse tempo que o Tempo me deu, coloquei como prioridade rememorar o passado, não numa perspectiva de retrotopia – assim cunhada por Bauman, no seu livro homônimo –, mas na de Bobbio, de que o relembrar é uma atividade salutar, pois, na rememoração, encontramo-nos e encontramos a nossa identidade como uma maneira sadia de crescimento. Foi assim que me permiti reavivar estas memórias que aqui trago ao abrigo das palavras de Paulo, que tomei como epígrafe, e, como no romance de García Márquez, tendo a pandemia como cenário.

A guerra, o medo e a incerteza do dia seguinte

Ao ter conhecimento, pela mídia, da corrida desesperada de pessoas aos supermercados e às farmácias buscando armazenar alimentos, álcool em gel e outros itens, no início da pandemia, foi-me impossível não lembrar um passado não tão longínquo que eu vivi e em que a falta já gerenciava as nossas vidas. Em intermináveis filas diante de lojas de mantimentos, as pessoas varavam a noite na esperança de poder comprar gás, leite, enfim, coisas de primeira necessidade, na luta pela sobrevivência. Eram tempos de guerra. A diferença entre o agora e o ontem é que a guerra que então se vivia, e da qual éramos reféns, era protagonizada por seres humanos contra seres humanos, com armas letais de um lado e de outro, lutando pela concretização de suas utopias. A guerra de hoje tem como inimigo um vírus, desenhado como uma bolinha cheia de pontinhos, aparentemente inofensiva. Mas, invisível que é, esse inimigo precisa mesmo de “atiradores de elite” para pôr fim à sua ação, que se faz sem hora marcada e sem escolha da próxima vítima. A guerra de ontem deixou ruas povoadas de cadáveres; a de hoje invadiu hospitais. E se agora, como medida de prevenção, as palavras de ordem são “fique em casa”, naquela época, havia apenas uma, que se impunha pelo seu modo imperativo: “fujam”. Eu, como tantas outras pessoas, fugi. Fugi do medo, da incerteza do dia seguinte, daquela guerra em que a morte dizia, o tempo todo: “presente”.

As lembranças aqui evocadas não são, entretanto, as únicas que me vêm à memória nestes tempos insulares.

 Intermitências da morte (1)

Em 1971, a morte achou por bem visitar-me. Sem convite, apresentou-se, sorrateira, e quase conseguiu levar a cabo os seus malignos intentos. Porém, e graças à rápida intervenção de amigos que se uniram na luta contra aquela que, sutilmente, se tinha interposto no meu caminho, ela, a morte, como no romance de José Saramago, não conseguiu entregar a fatídica carta com o atestado de óbito. Tal como o violoncelista, personagem do escritor português, eu sobrevivi.

Doença? Não. Acidente doméstico. Intoxicação por gás, no banheiro. Notícia de jornal.

Intermitências da morte (2)

Era outubro de 2010. Os ânimos fervilhavam, em razão do segundo turno das eleições presidenciais.

Domingo de sol. Panfletagem. Utopias ao vento.

Dor. Hospital. Cirurgia. UTI.

Turbilhão.

A morte, cujas intenções a meu respeito haviam sido frustradas lá atrás, decidiu voltar a rondar-me, desta feita com mais insistência, segura de que seria bem-sucedida, já que nisso havia apostado os seus maiores esforços.

Nos 12 dias de UTI, o livro De profundis valsa lenta, de José Cardoso Pires, foi, mentalmente, o meu companheiro. Com a ajuda dele, somada a uma enorme torcida, eu logrei, uma vez mais, enganar a morte. Fui salva pela vontade de viver e pelo amor.

O confinamento a que a pandemia me sujeitou fez-me trazer à tona estas memórias. Pelo seu significado. Pela sua importância. Como reflexão. Como renascimento. E como certeza de que “sem amor, eu nada seria”.

Em tempos de Covid-19 e de cólera (não do cólera), talvez as palavras da Legião Urbana possam ainda, e apesar de tudo, encontrar eco: “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”.

À guisa de conclusão

Vem-me à mente um provérbio africano, que me parece adequado à situação que agora vivemos: “On n’est pas orphelin d’avoir perdu père et mère, mais d’avoir perdu l’espoir” – que quer dizer, numa tradução livre, que ninguém é órfão quando perde o pai ou a mãe, mas, sim, quando perde a esperança.

              

 
Maria Gabriela Cardoso Fernandes da Costa é portuguesa de nascimento, angolana e brasileira de coração. Doutora em Letras na área de concentração em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Paraíba, é professora de Literatura de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas. Integra o grupo de pesquisa Literatura & Utopia desde a sua formação, em 2000. Atualmente o seu principal foco de interesse são as Literaturas A
fricanas de Língua Portuguesa. Tem publicados os livros
Sobre as águas da memória atlântica - as vozes entrelaçadas de Lueji-O nascimento de um império e Viva o povo brasileiro  (EDUFAL, 2009) e Agora sou eu que falo, eu, Gabriela (Porto: UNICEPE, 2014. Tem várias participações em eventos nacionais e internacionais, com destaque para a apresentação do livro O torcicologologista, Excelência  do escritor português Gonçalo M. Tavares, por ocasião do seu lançamento na cidade do  Porto, em 2014. Em 2018 participou do evento Mulheres Africanas em Trânsito-Homenagem a Alda Lara, promovido pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com a apresentação de um trabalho sobre a poetisa santomense Conceição Lima. Seus trabalhos mais recentes foram publicados nos livros Trânsitos utópicos (EDUFAL, 2019) e Utopismos alagoanos : de ilhas, cidades e viajantes. (EDUFAL, 2019). É co-organizadora do livro Entre (laços) literários, que sairá brevemente, publicado pela EDUNEAL.

 


domingo, 4 de outubro de 2020

José Vieira da Cruz, ELEIÇÕES, REDES SOCIAIS E ÉTICA

 

ELEIÇÕES, REDES SOCIAIS E ÉTICA

 José Vieira da Cruz*


Há poucos dias, iniciou-se a corrida eleitoral para os cargos de prefeito(a) e de vereadores(as). A exemplo de outros pleitos, as redes sociais terão papel importante para os(as) candidato(as) e os(as) eleitores(as).  Nesta perspectiva, a política, em uma sociedade democrática, utiliza as eleições, como um dos seus principais componentes. E, em regra, o processo eleitoral, seja através das redes sociais ou fora delas, configura-se como o momento em que as diferentes concepções políticas de sociedade desenvolvem debates de ideias, propostas e projetos.

Neste ano, em particular, por conta do distanciamento social em razão da pandemia, o processo eleitoral tem nas redes sociais seu principal veículo de divulgação.  Assim, através destes ambientes virtuais, deveria ocorrer maior interação entre o candidato e os eleitores, a partir do respeito às diferentes opções políticas, do acesso livre de informações de campanha, da garantia de liberdade de expressão e do consentimento a pluralidade de ideias. Assegurando a cada cidadão conhecer, analisar, concordar ou discordar das propostas e, consequentemente, votar, de forma esclarecida, em um(a) candidatado(a). No entanto, ataques pessoais, fake news, invasões de hackers e outras formas de agressões, trapaças e jogo sujo estão correndo, com certa frequência também nos espaços virtuais, e impedindo o debate qualificado. Atitudes que devem ser rechaçadas, denunciadas para as devidas sanções legais e, sobretudo, repudiadas pelos eleitores nas urnas.

Independentemente da coligação eleitoral, do partido, da candidatura, da posição ideológica, gênero, classe ou raça, todo cidadão tem o direito e o dever de repudiar candidaturas, grupos ou pessoas que venham a cometer agressões, ataques, insultos e afrontes as regras e aos participantes de disputas eleitorais, com o simples objetivo de tirar o poder de escolha do cidadão.

De modo geral, as redes sociais têm ampliado as possibilidades de comunicação do indivíduo com o mundo e, principalmente, com a política. Através delas, sem filtros e mediações, perfis, campanhas e debates eleitorais circulam de modo rápido, instantâneo e massificado. Essas possibilidades, por sua vez, devem respeitar limites éticos: o respeito aos adversários e a sociedade, a veracidade dos fatos divulgados, a observância a legislação e a proposição de ideias, propostas e projetos realistas, viáveis e executáveis.

É salutar, participar, acompanhar e avaliar as disputas eleitorais tanto nas redes sociais quanto fora delas. Isto constitui-se em grande aprendizado, exercício político e desafio a consolidação da democracia em bases factíveis e sem demagogias, promessas irrealizáveis, populistas e contrárias ao interesse público.

Dessa forma, a democracia, como é de conhecimento público, não é um sistema político infalível, perfeito e desprovido de contradições. No entanto, no curso de sua vivência e aprendizagem, entre erros e acertos, propicia a articulação de interesses, disputas e perspectivas diferentes. Ela, justamente por essa razão, assegura a liberdade de expressão e garantias imprescindíveis aos direitos individuais, coletivos e humanos, como saúde e educação pública, preservação e sustentabilidade do meio ambiente, desenvolvimento econômico-social, e, sobretudo, a defesa da vida, por ser o bem maior do ser humano.

As críticas em relação aos limites das redes sociais, dos processos eleitorais e da democracia não significam prescindir deles. A este respeito, como bem expressou, a filosofa judia, ativista contrária ao Nazifascismo, Hannah Arendt, “não precisamos jogar fora a criança junto com a água do banho”. Portanto, não se deve, de forma absoluta, rejeitar a democracia, os processos eleitorais e as redes sociais, ainda que eles, na dinâmica de suas experiências e aprendizados, tenham contradições, conflitos e, por vezes, resultados indesejados, mas mesmo assim e apesar disso, asseguram o direito de livre expressão, liberdades individuais e o respeito à diversidade.

É sempre importante lembrar que a política é o resultado do acúmulo de experiências do passado, das escolhas do presente e do horizonte de expectativas futuras que cada sociedade tece ao longo do tempo, espaço e contexto que a envolve. Neste sentido, os limites e desafios democráticos podem ser equacionados, resolvidos e superados através do respeito a ordem jurídica constitucional, do aprendizado acumulado e das escolhas que os indivíduos e a sociedade fazem a partir de suas experiências políticas.

No Brasil, nossa tenra tradição republicana, e dentro dela nossos valiosos momentos de experiências democráticas, não raras vezes, foram premidos e alternados entre a disputa de militares e bacharéis, com suas armas, leis e interesses – nem sempre coadunados com os interesses de parte da população mais explorada, excluída e invisibilizada. Os protagonistas do poder político, nem mesmo nos instantes em que empunhavam a bandeira do autoritarismo – seja no período do Estado Novo, 1937-1945, seja no período da ditadura civil-militar, 1964-1985, reivindicaram o título de ditadores. Eles, ao contrário, em nome da depuração dos valores morais, religiosos e patrióticos, deformaram as instituições republicanas, a democracia e os direitos humanos através da censura, do fechamento do parlamento, de prisões arbitrárias, de torturas, de assassinados e jogando para baixo do tapete escândalos políticos, éticos e de corrupção.

O mais grave é que as ditaduras, não importa quando e onde elas ocorram, sempre começam com o apoio de parte da sociedade civil que logo se ressente dos seus efeitos – supressão da liberdade de expressão, vigilância institucional, obstáculos a transparência de informações, além, da suspenção, fechamento ou restrição de espaços coletivos de tomada de decisão política.

Em suma, temos ciência e consciência que a democracia não é perfeita, que as opções eleitorais disponíveis nem sempre são as desejadas, esperadas e idealizadas e, ainda, que as redes sociais para além democratizar o acesso ao conhecimento, também se constitui em espaços de manipulações, falseamentos, abusos e crimes. Mas, sem abdicar dessas críticas, é preciso reconhecer a importância do aprendizado, do acúmulo de experiências e dos limites que a atual ordem constitucional nos possibilita. E, enquanto cidadãos, de modo crítico, ético e consciente tecermos nossas escolhas.

As escolhas que cada sociedade faz, a partir das preferências dos indivíduos que a constituem, não cabem nesta breve ponderação e não é essa nossa pretensão. Neste escrito, expressamos apenas, para aqueles que nos honram com sua leitura, algumas reflexões acerca dos limites da política, das eleições, do uso das redes sociais e do exercício da democracia em nosso tempo – pois consideramos que cada um é responsável pelas escolhas que faz e, socialmente, colhemos os resultados das escolhas de todos.

 

*Professor Adjunto da UFS, doutor em História pela UFBA, pós-doutorado em Educação pelo PPGE/UFPE, membro: do PPGH/UFAL, do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE) e da Academia Alagoana de Educação (ACALE).

Marcelo de Campo. O NOVO CORONAVÍRUS E AS AÇÕES DA COMUNIDADE TINGUI-BOTÓ


 

 
EL NUEVO CORONAVIRUS Y LAS ACCIONES DE LA
IL NUOVO CORONAVIRUS E LE AZIONI DELLA COMUNITÀ TINGUI-BOTÓ
THE NEW CORONAVIRUS AND THE ACTIONS OF THE TINGUI-BOTÓ COMMUNITY  
 LE NOUVEAU CORONAVIRUS ET LES ACTIONS DE LA COMMUNAUTÉ TINGUI-BOTÓ

Marcelo de Campos

Documentarista

Fundador do núcleo de Cinema Tingui Filmes

Licenciando em Biologia pelo IFAL 

Membro do GPHIAL – UNEAL

 Introdução

            Os Tingui-Botó foram reconhecidos como povo indígena em 1980, após o professor Clovis Antunes enviar documentação de reconhecimento sobre este povo a Funai. O reconhecimento dos Tingui-Botó como povo indígena representou o resgate de um povo anteriormente disperso, em processo de etnogênese. Era a substituição de uma identidade acanhada, de caboclo pelo orgulho étnico de ser índio”. Acerca dessa temática, seguem-se desdobramentos políticos, como reivindicações de posse de terras, por direito imemorial, e luta pelo seu reconhecimento.

O aldeamento do povo Tingui-Botó se deu no município de Feira Grande e Campo Grande, em Alagoas, na comunidade de Olho D’água do Meio, onde são preservadas 60 tarefas de mata para a realização do ritual do Ouricuri. O ritual do Ouricuri é o emblema do povo Tingui-Botó. É de onde sai a doutrina, a paz e a perseverança para com o outro. É de lá que se aprende a viver em paz, em comunidade.

            Segundo o cacique Eliziano de Campos, atual chefe da comunidade Tingui-Botó, o Ouricuri, vive entre os Tingui-Botó há mais de 140 anos. De acordo com a idade e a oração do seu pai Plácido de Campos, um dos fundadores da comunidade, o Ouricuri não é uma tradição apenas do povo Tingui-Botó, é um nome dado à religião de várias aldeias do Nordeste. É caracterizado como um local sagrado onde os indígenas cultuam seus costumes ancestrais fechados. É comum entre os indígenas que seja frequentado o território sagrado de outras aldeias, para a realização do ritual do Ouricuri. Entretanto, é condição necessária ser do mesmo povo de origem para participar do ritual.

No caso dos Tingui-Botó, apenas os povos Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio, Xucuru Kariri de Palmeiras dos Índios e os Aconã de São Brás frequentam a mesma taboa sagrada, por serem ambos do mesmo povo, mas de localizações geográficas diferentes.

A denominação atual da comunidade Botó, foi dada pelo curandeiro João Botó, o mesmo que se instalou com sua família em Olho D’água do Meio, por volta de 1940, após a construção do Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso, em Porto Real do Colégio.

No entanto, a instauração da família de João Botó nos arredores do local sagrado do ritual Ouricuri, em Olho D’água do Meio, foi confirmada em 2002. Através do reconhecimento pelo Instituto Socioambiental do nome dado pelos índios Botó e o pajé da comunidade Kariri-Xocó, em 1980.

Os Tingui-Botó são considerados um povo guerreiro, porque estão sempre em batalha, em luta constante por sua afirmação, sua sobrevivência, manutenção e descendência.

A comunidade Tingui-Botó possui lideranças tradicionais, o cacique ou chefe do povo. Sendo escolhidas tanto pelo processo de escolha e/ou legitimidade, quanto pelas funções que exercem. As lideranças tradicionais têm o papel de representar coordenar, articular e defender os interesses das famílias e do povo como responsabilidade herdada dos pais, a partir das dinâmicas sociais vigentes. Em concordância, as lideranças políticas geralmente exercem funções específicas nos aldeamentos, como dirigentes de organizações indígenas formais, intermediários e interlocutores de comunidades indígenas.

Neste cenário, as ações do governo para com as aldeias indígenas são embasadas no modelo de governo dos brancos. Um fato que por vezes gera impasses frente a necessidade da conquista de direitos e de voz frente ao cenário de desigualdades sociais e exclusão vivenciada pelo povo indígena.

Neste interim, as lideranças políticas são constantemente consideradas mediadoras entre as antigas lideranças e a sociedade regional e nacional.

Diante dessa organização política, surgem situações difíceis e desafiadoras como a pandemia mundial causada pelo Coronavírus, exigindo união e cooperação entre todas as organizações políticas, para que as comunidades consideradas desfavorecidas sejam amparadas e fortalecidas.

É necessário, então, que as políticas sociais e as ações de governo impulsionem mudanças e reestruturação na dinâmica mundial atual, incluindo a dinâmica de comunidades indígenas, consideradas em condição de desiguais perante o contexto social, frente ao desafio Coronavírus.

 

A notícia do novo coronavírus chega ao povo Tingui-Botó

            A comunidade Tingui-Botó recebeu a notícia da disseminação do Coronavírus através da mídia e das redes sociais. Fato que causou pavor entre os indígenas, assim como a todo o mundo.

            Desde então, foram tomadas algumas medidas orientadas pelo Ministério da Saúde, quando a má notícia de um vírus com alta transmissibilidade chegou ao povoado. As lideranças convocaram a equipe de saúde local, com a finalidade de compreender os principais impactos e riscos que a doença representava a população. Logo em seguida, o líder convocou todos os Tingui-Botó para uma reunião em caráter de urgência.

 

Ações dos Tingui-Botó contra a pandemia do novo coronavírus

            As medidas tomadas foram restrição e limitação da saída dos moradores da comunidade para outros lugares. A liderança tradicional deixou resolvido que os portões que dão acesso à comunidade fossem fechados e mantidos com cadeados e as chaves fossem mantidas com o pajé e o cacique, ou em posse dos motoristas que conduzem os veículos de urgência e emergência, em casos de ocorrência.

            Todos os indígenas que moram fora da comunidade teriam acesso limitado a área, podendo visitar a aldeia apenas com o uso de máscara. Os indígenas que moram na comunidade, só puderam seguir as cidades circunvizinhas em casos de urgência, como em casos de saúde ou compra de alimentos.

Por sua vez, as lideranças fortaleceram o acesso a produção de alimento na comunidade para que não fosse uma necessidade a compra fora da aldeia. As mulheres grávidas que parissem em hospitais fora da cidade deveriam permanecer 14 (quatorze) dias isoladas, em casa da comunidade cedida por familiares, recebendo visitas apenas da equipe de saúde.

Porém, a medida de peso maior entre os Tingui-Botó foi a mudança de datas dos rituais religiosos que foram repensadas, sendo impedidas como medida preventiva, já que o ritual em solo sagrado é realizado coletivamente, o que provoca ajuntamento. Outrossim, todos os índios da comunidade Tingui-Botó ao reconhecerem que o ritual envolve corpo, mente e espírito – o coração do povo, onde saem todos os ensinamentos sagrados que envolvem a sabedoria –, aceitaram a condição, por saber que o sagrado está presente também nas árvores, no canto dos pássaros e nas estrelas.

Ou seja, a sabedoria do povo Tingui-Botó é uma dádiva sagrada, dada aquele que a merece. Os seres Tingui-Botó são seres humanos abençoados por sua ancestralidade, e dotados de sabedoria, são eles que inspiram os novos guerreiros. Suas lutas, seus sofrimentos e conquistas são imortalizados pela prática oral da comunidade.

Sendo então detentores de saberes espirituais, tais guerreiros sempre cuidam de seu povo, ao ensinar os jovens da aldeia por qual caminho seguir. Ainda assim, os próprios líderes religiosos, os sábios diziam que viriam épocas difíceis onde seria necessário que o povo Tingui-Botó deveria seguir com confiança, atitude e coragem.

 

Considerações finais

A precaução é uma das maiores armas contra qualquer batalha, e para esta batalha não é diferente. Devemos agir com cautela e consciência, reconhecendo que ao tomar certas medidas estamos cuidado de nós e do outro. Mesmo que, estejamos sentindo falta das reuniões embaixo da árvore principal da aldeia, seguir com fé e confiança é preciso para acreditar que dias melhores virão.

Ainda assim, lutemos com nossas armas, diante do risco causado por um vírus que atinge pessoas com baixa imunidade. Por isso, devemos fortalecer nosso sistema imunológico com o uso tradicional de ervas, plantas e raízes. Os banhos de raízes, chás e garrafas são princípios relevantes para a saúde dos Tingui-Botó, não excluindo a iniciativa dos profissionais de saúde que têm nos assistido nesses dias. É preciso também considerar os cartazes e panfletos que nos instruem sobre as principais medidas para combate do vírus.

Coordenação do Professor Amaro Hélio dos Santos

 

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Luiz Sávio de Almeida. Rio São Francisco: as águas e pedaços de mim

 

quinta-feira, 24 de julho de 2014

  1. São Francisco River: the waters and pieces of me

  2.  Río São Francisco: las aguas y pedazos de mí

  3. Rio São Francisco: as águas e pedaços de mim 

Luiz Sávio de Almeida

texto sobre as fotografias está da forma como foi redigido em campo,  logo após ter sido tirada a foto ou depois, à noite, quando as imagens do dia eram repassadas.

Fotos, 1  2  3 

 
Nem precisa comentar. A canoa é a mesma do meu tempo de menino. A vela tem o mesmo formato, mas não  é a mesma canoa e nem a mesma  vela. E nem o mesmo vento, no que basta olhar para o motor de rabeta.

Foto 4 

Quem reconhece a força das águas do rio?  A âncora? Ela seguramente segura com segurança. Mas a âncora não decide, ela é mandada e esta é uma âncora quatridente e singelamente repousando.  Parece que entre navegar e ancorar, a diferença é pouca. E se eu jogasse a âncora agora, o que aconteceria? Não sei. Deveria saber?


Foto 5
A escada é diferente da âncora. A escada fica sobre o azul e branco, enquanto a âncora fica sobre o verde. Ninguém facilmente é capaz de subir e descer pela a âncora. Pela escada pode. A escada é um caminho feito por duas ladeiras: uma que é subida e outra que é descida. 
 
Foto 6
 
Já subi e desci o rio nesta barca. É a Zanata. O pessoal é gente fina, mas nunca vi tanta barata dentro de um barco. Saí do salão, pois não aguentava e fui dormir aí em cima, enrolado em um lençol velho ou, melhor dizendo, histórico. O  vento batia mesmo, mas me livrei do que poderia ser um baraticídio.


Fotos 7  8   
 
Já subi

Eis a cara da Penedo, a mui leal e valerosa Vila. Quando eu era menino, cantava-se:
Penedo vai,
Penedo vem.
Penedo é terra
De quem quer bem!

Não esqueço desta música que cantavam lá em casa. Parece que o compositor morava na Rua da Penha, numa casa verde.

Lindo berço dos poetas
E das artes sublime inspiração...
Do São Francisco és a Princesa
Cidade amor Penedo!
Esta, também, é a formosa Rua da Praia, montada com algodão e gado. Lá está o Hotel das vedetes.
 



Fotos 9  10  11

Os povos andam nas águas; todo mundo que mora nas beiras do rio, tem que ser anfíbio. Quem não nada como peixe e jacaré,  anda de alguma forma nas águas. O que pensam estes menino pendurados na janela? O que eles vêm? Sera que adivinham o fato de que não somos daqui? Eles andam na Valéria. Eu penso que Valéria deve ser filha ou esposa do dono da lancha.

 
Fotos  12
 Esta é a minha velha e conhecida Carrapicho. Fica quase em frente a Penedo. Menino, eu brincava com os bois  de barro que faziam no Carrapicho, como as meninas brincavam com as panelas. Depois, fui diversas vezes subir a ladeira, entrar nas casas pobres dos artesãos que moram ali. É interessante o monumental da Igreja, a  casa a fazer uma das  esquinas da rua da ladeira.