quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Pablo Carvalho. Catracas Púrpuras

 

 
Este texto Catracas Púrpuras de Pablo Carvalho foi publicado na semana de 13 a 19 de abril de 2014, ano 2, nº 59. Desejando obter o texto publicado, dirija-se a redacao@odia-al.com.br
 
Dois dedos de prosa

Pablo Carvalho construiu sua carreira em literatura, ainda em Maceió,  quando estudante; posteriormente, dedicou-se ao campo policial, tornando-se delegado na Paraíba e, posteriormente, em Pernambuco, onde ainda se encontra: Recife. Seu romance Catracas Púrpuras foi premiado pela FUNARTE em concurso nacional. Isto não concede, automaticamente, registro de qualidade, mas sem dúvida indica sobre um belíssimo caminho a ser percorrido.
               O registro de qualidade não é o sinete do Estado, mas o texto em toda a sua expressão e  onde beleza e crueza de cotidiano articulam um contexto significativamente verdadeiro, demonstrando que a arte é quase sempre mais versátil para com a verdade do que a chamada ciência, com todo um corpo minado pelo formalismo.
 Cáscara Púrpura, para mim, é uma reflexão pesada sobre o cotidiano fazendo com que brotem os modos mais profundos da expressão de pessoas em situação limite na vivência do dia a dia. É isto que se encontra, ao se andar pela sublimidade feia expressa pelo autor.
               A fronteira entre a literatura e as narrativas sociais é muito tênue e, sem dúvida, ela incorpora, pela sua linguagem, uma fertilidade sobre o mundo que a científica pode tolher. A dor, o prazer, os sentimentos estão mais plenamente na arte do que na ciência, uma espécie de letra fria, sempre imprensada pela dilaceração da verdade, enquanto a obra de arte a constrói. Jamais estaríamos negando a importância do trabalho científico, mas apenas chamando a atenção para a versatilidade da literatura em entrar por caminhos onde o humano é mais facilmente radicado.
               É justamente o que se encontra na raiz do texto de Pablo: o humano, demonstrando por outro lado que condições como beleza e estética não têm fronteiras. Qual a razão que impediria um Delegado de Polícia vê-las? Nenhuma. Delegado de Polícia é um dever de ofício, sentir a beleza demanda o olor da poesia. A pergunta é muita da tola.
               Meu amigo,  Campus tem o imenso prazer de chegar às pessoas, o seu texto bonito e oportuno;  na leitura que  você faz da vida, dá-nos sede de procurar pelas Alagoas profundas, aquelas Alagoas onde o mistério da vida efetivamente  se demonstra, para onde se pode ir desde que se tenha olhos para ver e ouvidos para ouvir.
               Um beijo na sua testa.
               Luiz Sávio de Almeida
Fio a Pavio, abril de 2014
  
O alagoano Pablo de Carvalho é romancista, cronista e compositor. Vencedor do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras. O lançamento aconteceu na sede da Funarte, no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Catracas Púrpuras concorreu com cerca de seis mil projetos do país inteiro, e foi o único representante nordestino dentre os cinco vencedores. Pablo é também vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado no mesmo ano pela Universidade Federal de Alagoas. Escreveu a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos, disponível em http://chicoelpidio.blogspot.com.br. Delegado de Polícia, atuou por três anos no alto sertão da Paraíba, e por três anos e meio no Departamento de Homicídios de Recife. Atualmente chefia a delegacia de polícia do bairro de Afogados e comanda uma equipe da Divisão Especial de Apuração de Homicídios do DHPP, ambos em Recife, PE.

Carlo Magno Santa Cruz e Gabriel Conceição, a mando do coronel e ex-Secretário de Defesa Social João Batista Dias, percorrem o submundo atrás de José Emanuel Bunto, estuprador e assassino. Nessa história sem inocentes nem culpados, em que as palavras e os sentidos, as técnicas e os sentimentos vivem trocando de lugar, brutalidade e lirismo, canto e tortura, sinceridade e ganância se encontram, se misturam, se perdem, se separam e se reencontram em torno dos dois investigadores. Por caminhos objetivos, por ruas, prostíbulos, praias, sertões, o livro segue seu claro enredo de fatos concatenados; mas, por caminhos pessoais, sentimentais e estéticos, o mesmo livro veste a natureza do ato humano com novas formas. Mas que fique claro: Carlo Magno Santa Cruz e Gabriel Conceição, a mando do coronel e ex-Secretário de Defesa Social João Batista Dias, percorrem o submundo atrás de José Emanuel Bunto, estuprador e assassino. 

Com doçura poética e sentimentalismo costurados a rasgos de crueza e realismo brutal, a literatura, com sua magia, casa visões aparentemente inconciliáveis: cria a poética na desgraça e vai suturando abstrações dentro do caminho implacável que seguem Carlo Magno Santa Cruz e Gabriel Conceição, homens de violência. O autor testemunha dois mundos e junta na mesma caixa o que viveu em sua carreira nas polícias de Alagoas, Paraíba e Pernambuco, ao universo abstrato e metafórico criado quando escreveu o romance Iulana. Aparentemente, Catracas Púrpuras leva o leitor a viajar por dois mundos distintos, mas quando a aventura de Carlo e Gabriel chega ao fim, a realidade se torna coisa só, e já não se sabe mais se um dia houve as fronteiras da convenção e da mania de classificar a vida. No fim de tudo, Catracas Púrpuras é um livro sobre a realidade das coisas.   

Catracas Púrpuras
Pablo Carvalho

Catracas Púrpuras nasce de minha estranheza diante da violência. Não digo estranheza pelo fato da violência em si, mas pelo fato de as pessoas não enxergarem na violência a sua inafastável carga poética. Durante meus anos todos de polícia, sempre percebi naquelas tragédias de delegacia, naquelas formas emocionais, naquele sangue espalhado, algo de uma, digamos, sublimidade feia, que toca a alma muito mais que a simples compaixão ou o choque da narrativa de um fato bruto e criminoso. Claro que isso não significa frieza diante da dor alheia; ao contrário, significa expandir os horizontes, o alcance, a estética diante do ciclo da tragédia humana em uma de suas expressões mais explosivas, que é a que se dá no palco da vida policial, talvez menos intenso apenas que o da guerra.    

Sendo mais claro: eu lia os poetas, ouvia os músicos, divagava, meditava e, sempre que estava diante de um drama policial, de um homicídio, por exemplo, aquelas formas artísticas invadiam minha visão junto com a cena do cadáver esfolado em torno de sua moldura de sangue, e isso não afastava de mim o fato em si, brutal, duro; isso apenas o adornava de algo mais completo. E eu não via essa conjugação de coisas na ficção, na poesia – se existe, desconheço. O que eu via eram expressões ou de puro distanciamento artístico para a abstração, de um lado, ou, em seu extremo oposto, de um realismo objetivo e quase jornalístico.


Assim, comecei a escrever essa poética da desgraça em estilo lírico, em estado de fantasia de forma e conteúdo, depois fui rasgando o texto com entradas de realidade nua e crua. E invertia o jogo: o que aqui se narrava com sutileza e musicalidade, ali se narrava com objetiva grosseria. Fazia isso na narração, depois na descrição, e por fim nos próprios diálogos. Depois, feito quem pinta uma tela ou talha uma escultura, eu me afastava e observava o resultado. Ficou bacana: quase não acredito!

Enfim, minha visão da coisa era aquela: aquele lance vertical que considerava tudo, engolia tudo, reparava em tudo, desde a matéria em decomposição até o mais refinado contorno metafórico que estava ao meu alcance. Mas flutuava a pergunta essencial: as pessoas haveriam de entender aquilo? Fiz o teste. Mandei trechos a uns amigos. Surpresa minha: entendiam claramente. Chocavam-se, achavam estranho, mas o texto era, no final das contas, perfeitamente compreensível, mesmo a leitores não habituados à literatura de arte. Nada de hermetismo. O livro estava claro como o dia.  

O segundo teste foi concorrer pelo Bolsa Funarte de Criação Literária, do Ministério da Cultura. Era uma parada duríssima: um desconhecido escritor, delegado de polícia, nordestino do pé rachado, nascido e crescido em Alagoas e agora morador de Pernambuco, inscrevendo um projeto de livro exótico para concorrer com quase seis mil projetos do Brasil inteiro. Passei na primeira fase, a regional. Na segunda fase, a nacional, a FUNARTE escolheria apenas cinco livros para publicar por seu selo. Catracas Púrpuras foi escolhido dentre os cinco, e aqui estamos.

Mas Catracas Púrpuras ainda é um livro desconhecido dos públicos alagoano e pernambucano, muito pouco divulgado – os jornalistas Luis Vilar, Vanessa Alencar e Simone Cavalcante ainda escreveram sobre a obra e seu lançamento. De quem é a culpa desse desconhecimento? Minha, principalmente. Confesso que sou uma desgraça em termos de autopromoção: tímido, caseiro, não-tribalizado etc. Outro fato contra é que o livro apenas pode ser comprado na livraria da FUNARTE (http://www.funarte.gov.br/edicoes/.), no Rio de Janeiro, ou em alguns sites. Mas, em breve, a FUNARTE, detentora dos direitos autorais, irá disponibilizar a obra para download grátis. Vamos aguardar. Estou otimista com essa possibilidade de difusão ampla e gratuita.




Vinheta

Dois olhos, injetados de pura raiva, enquadram a vítima.


Mas a raiva, coisa densa e externa, está apenas nas sobrancelhas que se juntam em compressão, e nas pupilas sobre as quais as pálpebras caem diagonalmente: dentro do homem o ambiente é de calma. É tudo e o mais em silêncio e quietude. Em torno ao coração parece haver uma neblina, ou garoa de doce umidade, de manhã serrana, embora faça meio-dia em ponto no tempo de fora.

O antebraço se contrai e enverga o indicador, que atrasa o gatilho – apesar de o movimento ser à retaguarda, passa tanta sensação de avanço que nos confunde ver e sentir.

O cão, que tem forma de cavalo e aspecto de cão, segue em marcha à ré a intenção do irmão gatilho, de quebra girando o tambor como que com a ponta da pata.


De repente o esforço se detém. O gatilho para a milímetros do guarda-mato. O cão, que tem aspecto de cavalo e forma de cão (ou será o inverso?), oscila em gesto de touro estudando.

Uma pupila, em forma de túnel, mantém a visada perfeita; a outra, coberta da pálpebra, está desligada. O dedo avança (ou retrocede?) e o cão chifra o percussor que espeta a espoleta que incendeia a pólvora que explode e expande gases que empurram o projétil pelo cano fora, e o projétil (agora, desaceleremos) avança com sua cena para o parágrafo abaixo.


O projétil, nave de chumbo com astronauta remoto, gira e perfura o ar, como uma broca (e isso, destoando quase deste jeito de fazer literatura, é literalmente assim), preciso e espiralado, desfazendo-se de resíduos e fogo e fuligem e som, purificando-se a girar linearmente até entrar pela nuca de um homem cujos olhos só se esbugalham de susto quando o projétil já lhe extrapola os tecidos pelo orifício de saída.

Deixando para trás o corpo que se ajoelha, e antes mesmo de esse corpo ajoelhar-se, o projétil, rajado de sangue e polvilhado de fragmentos ósseos, choca-se contra um poste de concreto e ganha forma de cogumelo.


Esse cogumelo, uma vez rebatendo do poste – bem em frente à lente da câmera –, é cercado por uma expansão de cimento, sangue, chumbo e farpas de ossos cranianos.

Justo nesse momento, justo quando as forças e as coisas se afastam e crescem para cessar, paralisemos a cena e enviesemos, saindo do nada, o nome Catracas Púrpuras.

Boa leitura.


  1. Os injustiçados

Noite, noite enorme, infinita noite de azul desviado em preto. Noite invisível às pessoas que estão debaixo da iluminação pública, sob lâmpadas invejosas de estrelas; lâmpadas municipais que não deixam ver mais que o brilho tributado de suas caras. Sim, noite de começar um livro, noite que fez começar todos os livros, as palavras todas da tristeza dos homens.

Por entre essas palavras, que estão em tudo, na composição dos prédios, nas pedras do calçamento, no ar e na água, nos pés e nas mãos, Maria Silva caminha com um caderno abraçado aos peitos. Caminha, passeia, ajeita os cabelos com suavidade, e de um instante para outro, do tempo novo que engoliu o tempo novo, se vê raptada, arrastada para o mato, rumo à cena que segue.

*

José Manoel Bunto, apelido Bunto, resfolegava, gemia, rangia dentes em pleno ato de estupro. Batia nas carnes de Maria Silva, e dos sexos unidos fundos gritos infernais ressoavam. As mãos do casal se tateavam com sofreguidão. Ele lhe acarinhava os cabelos; ela gozava inúmeros estribilhos irritados. Enquanto isso, o mato em torno se debruçava e se encaroçava em flores de pétalas voltadas para dentro. Maria Silva ardia e machucava os cotovelos no barro, rezando para que Santa Cecília, que nada vê, lhe cuspisse uma unção por ela gostar tanto assim de sofrer por dentro, e de maldizer o que ama: a violência funda, a subjugação, o tapa no rosto com reação delicada de noiva em mão para aliança – nunca houve, delirava ela, nem haverá, mais que a noiva, figura de mulher oferecida.

Depois do gozo, uma viagem íntima, em submarino, em asa de arraia, rente à delicadeza que cresce, como liquens, nas paredes do coração. Depois do o gozo, carnes mortas, bocejos de tempestade, e mãos acarinhando tudo em tato vermelho, amanhecendo de dentro para fora. Depois do gozo, a consciência decanta, os olhos se abrem, os ouvidos atentam às vozes do mundo.

(...)

Depois do gozo – daquele –, outro gozo vinha:

Para ele, o estuprador, o gozo bastante provisório de contemplar a mulher desfalecente, sangrando pelo cabo da adaga, morrendo em torno de uma poça onde as estrelas mortas da noite boiavam como rosas acesas; de contemplá-la gemendo, boquiaberta, aos partos, aos gozos, às separações, entre um espelho carmim e a vista de flores inalcançáveis, acima e abaixo, além de além, dentro do intervalo em que aparece a figura do monstro, ainda olhos dos seus olhos de macho, ainda dono do instante.   

Para ela, a estuprada, o gozo definitivo de ser penetrada no ventre, o de espalhar em torno de seu corpo pálido um jardim de intimidade; o de morrer com a vista submersa em si, vendo-se enrubescida por si mesma. Poderia cantar, a pobre moça, pois estava feliz, e tanto mais feliz quanto mais anêmica, tanto mais leve quanto menos sanguínea. Amou o momento derradeiro como a admirar um homem aparentado ao Cristo.




2. Os injustiçantes

Era segunda-feira, cedo, muito cedo, mesmo para um dia assim antiquíssimo. A primeira hora de luz descortina o cadáver, desembainha mil lamentações e as põe em espera, olhos em vigília, eternamente à esquerda e à direita. O cadáver é uma mulher que paralisou a velhice – mas, em compensação, abriu mão da juventude –, emoldurada por uma aura de sangue coagulando, coroa de flores em outono de fora para dentro. Debruçada, boia no vermelho e infla a pele, já ensaiando ir até Deus do céu. Perto dali, uma garotinha passeia seus pequeninos pés pelo canteiro, através da mais pura realidade. Sente o cheiro da carniça, cogumelo abstrato. Uma folha podre nasce sobre sua língua, lâmina delicada que se dissolve e vaza pelas narinas. Aproxima-se por uma trilha. Não crê, mas vê o terrível presépio: a mulher morta, visão em impacto, agonia no tempo. Corre à procura de si mesma: às pernas de pai e mãe. Duas horas depois o noticiário escancara sua parolagem sobre os edifícios acinzentados:

– A cidade está em luto. Foi encontrado o corpo de Maria Silva, desaparecida há dois dias. A jovem estudante foi estuprada e em seguida morta com um golpe de punhal no abdome. Ainda não há suspeitos, mas a polícia segue em incansável investigação. Maria era filha do coronel da reserva e ex-Secretário de Estado João Batista Dias, conhecido por todos como Doutor. Doutor, que também é cantor, lançaria, no próximo sábado, seu primeiro disco, intitulado O Seresteiro. O evento, que aconteceria no Clube de Iatismo, foi cancelado.

Longe da difusão, a mãe de Maria Silva vomitava sobre o tapete da sala um enorme álbum de fotografias, que arrebentavam da garganta e secavam a fogo e dor. Metia as unhas nas cortinas da vida, tentando rasgá-las e encontrar a filha sã, numa camada que houvesse atrás das que teimavam em iludir seus olhos com imagens tão inacreditáveis. Mas nada havia que desmentisse o que estava posto. Morte. Morte. Morte presente: a filha ainda existia, mas só onde a ausência de oxigênio. 

– Desgraçado! Cão! Matou minha filhinha; tão nova, tão cheia de sonhos!... Digam que é mentira! Quero falar com ela; liguem para o celular dela... Quero ouvir sua voz... Cão, desgraçado...

O pai, ao seu lado, tragava aquele vômito colorido, respirava a dor dispersa e projetava um ronco subterrâneo, cheio de luz em trevas, amando a filha, ninando-a em ódio. As canções que, dias antes, voavam por sua cuca, vazando por seus assobios, transformaram-se em britas, caíram e se espalharam, a machucar as plantas de seus pés, que seguiam, um ante o outro, em marcha pesada rumo à hora do sepultamento. Ele juntou as cifras num baú velho: inúteis coisas, música sem sentido. Britas do que eram frases! – nem podia atirá-las contra as cordas do violão, a ver se ao menos uma nota torta surgia: era agora o anticantor, fundamente, como se em batistério proclamado.

– Eu pego, eu mato, eu esmago os colh. do desgraçado! Arranco as unhas, furo os olhos! Filho de uma puta, amaldiçoado! Como pôde?!   

 

4. O pai deseja a morte


Na delegacia de homicídios, entra o pai de Maria Silva. Arqueado, olhos arrastando-se no chão, as pupilas arranhadas. Senta-se em frente à mesa e ao sentar ergue-se, que, embora rasteje, o homem varado de dor senta (e todo homem vivo, no termo dos atos, senta, inequivocamente: os que voam pousam, os caídos erguem-se; bem assim os que caminham, os que acordam; os que sentem os intestinos revirar; os que acabaram de foder e, fodendo ou não, sentem fome; os que jogam, bebem, escrevem; os internautas, os atormentados – e por esse caminho cacete e infindável segue o que segue: que todos os viventes, na vírgula de cada ação, sentam-se). O pai ferido espalha pela mesa do delegado de polícia a maquete da tumba, mata a filha novamente, chora sangue puríssimo, quase pastoso, a esbravejar:

– Não prenda não, doutor! Mate, mate esse filho de uma puta! Mate devagar, arrancando as unhas, depois castre com um alicate, e no final jogue gasolina e ateie fogo! Mas me chame, eu quero participar!...
– Meu senhor, Doutor, até agora a gente só tem uma pista: uma amostra de sêmen colhida no interior do corpo. Não havia tecidos debaixo das unhas dela, o que é incomum. É preciso haver, no mínimo, um suspeito para fazer o exame de comparação de DNA! Já estamos intimando pessoas da vizinhança, mas é difícil, pois se trata de lugar ermo. Inclusive, Doutor, é interessante o senhor usar seus conhecimentos pra apressar esse exame preliminar, pois, quando a gente consegue autorização para fazer o referido exame, que custa caro, o resultado pode levar meses para voltar... Mas, como se trata de caso de repercussão... 
– Doutor digo eu: lhe dou quarenta mil reais! Lhe dou um carro zero!
– O senhor não está me escutando, Coronel: ainda não há indícios!
– Dou um carro, Doutor; dou quarenta e cinco mil!
– Por favor, Coronel, com todo o respeito... O senhor está transtornado, o que é perfeitamente compreensível... Mas eu tenho de trabalhar...

O pai, escurecido, fechou a gaveta de oferendas tórax adentro, abotoou o luto novamente. Voltou para casa. Perscrutou a vizinhança em busca da ausência (quem busca ausência, busca remédio) da filha; mas não havia ausência, e não havendo ausência, dor havia, dor enorme: a filha espalhada por todo o bairro, sua voz atrás das árvores, seus pés eternamente fugindo ao longo das calçadas, seus cabelos balançando num galope eternamente de costas que é de dizer, imitando inevitavelmente o compositor (Chico Buarque de Holanda): quanto mais corria, mais ficava.

Entrou em casa. Aliviou-se por um segundo – mas não mais que isso. Encontrou a mãe, no quarto, com o peso da filha dependurado nos ombros, que cediam, tornavam-se aduncos, queriam tocar-se, fechar o rosto materno feito castanha, protegê-lo da visão do mundo: a mãe, agora mais jovem que a filha. Ela ergueu ao marido um olhar aquoso, que repetia o estupro e o homicídio – repetia-os sempre, aliás, como novidades perenes. A dor lhe imolava os nervos. O coração estava pendurado apenas por uma pelanca. Era uma criatura que parecia só ter bebido água ao longo de cinquenta e dois anos – e de fato era mesmo.

– E então, ele vai matar?
– Ele nem imagina quem seja... Só tem uma amostra de esperma, mas não tem suspeitos.
– Chame os dois, homem; chame!
– Mulher, há tanto tempo estou de mãos limpas; estou em Cristo... Estou aposentado.
– Mas foi nossa filha, nossa filha!
– Eu sei. Não me aguento mais de dor.
– Chame, por amor de Deus!