segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Luiz Sávio de Almeida: Pedaços de memória: Penedo, It was fascination, I know

 

 

 

 

 

 

sábado, 19 de julho de 2014

Pedaços de memória: Penedo, It was fascination, I know


It was fascination, I know








Escute a música, leia e reveja os sons de sua vida.
Cuidado para não chorar. Lembre que ao clicar tem de  confirmar na imagem que aparece.

Clique para ouvir:

 O som da velha 78 rotações: Carlos Galhardo
Os sonhos mais lindos sonhei,
De quimeras mil meus castelos ergui
E no teu olhar, tonto de emoção,
Com sofreguidão, mil venturas vivi.
O teu corpo é luz, sedução,
Poema divino cheio de esplendor.
Teu sorriso prende, inebria, entontece,
És fascinação, amor.
A sorrir, a cantar e a beijar
Nossas bocas se uniam, então.
E os campos, sorrindo, viviam
E, nos vendo, as flores se abriam.
Mas, um destino mau certo dia chegou
E sem o teu meu coração ficou.
Hoje, sombra sou do que fui,
Minhas ilusões o destino levou.
Nada mais existe desde que partiste
E em meu coração só saudade ficou.
Vivo com o passado a sonhar,
Vendo-te, ainda, em meu coração.
Mas tudo promessas, quimeras, mentiras
Da tua fascinação.
 
Por anos a fio,  ouvi Carlos Galhardo, cantor da maior intimidade de meus pais; vez  em quando, um cantarolava  alguma valsa, algum bolero. Por causa deles, dos velhos, , estando certa feita em João Pessoa fui vê-lo em uma boate na praia.  Galhardo  estava velho, mas ainda portava uma aura de galã; o tenor meio trêmulo conseguiu puxar os versos  da encantadora  Fascinação. 
Isso deve ter sido perto de sua morte:  blazer,  gravata, o rosto atolado em maquiagem,  bigode e cabelo teimosamente pretos.  Com pouco tempo, deve ter morrido; ele faleceu em 1985 e nasceu em 1913.  Era  argentino de Buenos Aires. Estava ali, encostado numa boate-meio-quase-churrascaria, um dos mais importantes nomes da Era do Rádio neste país.  Seus pais eram italianos e Carlos Galhardo era Catello Carlos Guagliardi.

 Veio para o Brasil com dias de nascido, e então  segue para São Paulo e termina por bater com os costados no Estácio no Rio de Janeiro, onde vai se tornar alfaiate, e é em 1935 que se tem o início de sua carreira cultuada no Brasil;  ele  falava de amor e, com isto, cativava uma geração de tendência romântica, como se as mudanças no país não tivessem atrapalhado a estética da modinha que englobava  beijos velados a se fazerem tenazes no imaginário. 
O caminho começa com Cortina de Veludo e pouco a pouco foi se criando O Cantor que Dispensa Adjetivos, atuando nas grandes gravadores da época, desde os tempos das 78 rotações, no modelo que imperou até a altura dos anos 50. Ele é vencido pelo famoso long-play que cabia muita música e era mais fino, muito mais difícil de quebrar e com melhor qualidade de gravação. O pesadão era o de 78 rotações e 14 polegadas.

Quando eu era menino, assim por uns 18 anos, ouvi dizer, várias vezes, que o de 78 era feito com cera de carnaúba do vale do Açu no Rio Grande do Norte. Lembro quando o long-play entrou e o primeiro que vi foi em Palmares, Pernambuco. Passa tempo e aparece a primeira radiola lá em casa: era a Flor de Liz da RCA Victor. Tenho o móvel. Era um belo móvel de imbuia. Dentro, o pick-up e o rádio, além de divisões para colocar os álbuns de disco que, também, ainda guardo. 
A radiola ainda não era uma coisa comum e estou falando em 1958. Os amigos se visitavam levando long-play para ser ouvido. Alguns chegavam a ter o disco, mas não tinham como tocar e levava na casa do amigo. A juventude já começava a ouvir os acordes do rock, mas o pessoal da Era do Rádio ainda pontificava.

Foram muitas as músicas cantadas por Carlos Galhardo que ficaram em minha memória, desde a tenra idade em Penedo, quando era ouvido em um Zenith com ondas média, larga e curta e um olho mágico que ajudava na sintonia fina.
 Carlos Galhardo fazia parte do que vou chamar de sons e tons de uma cidade, no caso, a Penedo de minha infância. Carlos Galhardo se confunde com o que chamarei de recordações dos sons penedenses, pois ele viva nas raríssimas casas que teriam radiola, nas inúmeras casas com rádio, nas festas de rua pelos serviços de auto falante e na seleção que tocava nos cinemas, mormente, nas soiré.


Antes de começar o filme, as pessoas sentavam e ficam conversando, em um papo educadíssimo, ouvindo música e à espera da terceira chamada, quando então tocava o que era conhecido como o  prefixo do cinema. Lembro que em um deles, tocava a Aquarela do Brasil e no outro o Delicado. Você jamais consegue desalojar os sons de sua cabeça; eles fazem parte do cotidiano e são das mais diversas formas e valia. Carlos Galhardo não começou e terminou em Penedo; anda comigo pela vida e está aqui quando penso em sons de Penedo.  Eu não sei quando Fascination entrou nos meus ouvidos que jamais se libertaram da melodia. Possivelmente, eu comecei a ouvi-la a partir de uma versão inglesa que, comparada à em português, praticamente nada tem em comum.  Quem sabe, ela não seria bem diferente da sua feição inicial, composta em 1905 na França por Fèraudy e Marcheti.
 
Fascination

It was fascination
I know
And it might have ended
Right then, at the start
Just a passing glance
Just a brief romance
And I might have gone
On my way
Empty hearted

It was fascination
I know
Seeing you alone
With the moonlight above
Then I touch your hand
And next moment
I kiss you
Fascination turned to Love

A primeira versão brasileira foi gravada em 1943 por Carlos Galhardo e era de  de autoria de Armando Louzada e nada tem com a versão para o inglês:  são duas poesias diferentes para uma mesma melodia, mas ambas guardam aquilo que me fascina em Fascination: o tom nostálgico e o adocicado das cordas quando diz que o cara sabe que é fascination.  Ninguém pode esquecer, a interpretação dada por Elis Regina. Ela desfaz de uma forma sutil, toda a ideia da construção francesa e da construção americana, para dar uma tonalidade nossa a este lamento de amor.
Antigamente, como não havia a profusão das lojas de confecção, rara a casa de classe média que não tivessse o que se chamava de quarto de costura e, no mínimo, um lugar de trabalho onde ficasse a máquina de costura.  Lá em casa era uma Singer, comprada à prestação ainda quando meus pais moravam em Quebrangulo. Guardo com carinho este pequeno objeto que é tão grande em recordações. Minha mãe costurava e bordava pedalando a máquina que, em Penedo e na rua da Penha, ficava na varanda. Não era raro ouvir uma voz a se dizer maviosa,  infiltrando-se no meio dos ruídos das pedaladas, a linha enlaçada a brotar da carretilha. A voz em falsete falava de um modo extremamente delicado: Os sonhos mais lindos sonhei...

A máquina se encontra comigo e fica à esquerda da porta do meu quarto. Passo por ela e vez em quando me lembro da Fascinação, sinal de que, realmente, os  sons se agarram em nosso cabelo e os sons e tons de Penedo são carregados com peso de sentiento'.

 São muitas as músicas  cantadas por Carlos Gargalhado e que eu ouvia rebatidas dentro de casa. Já falei no Salão Grenat e agora lembrei-me de uma que retinha toda a condição de uma cavernosa modinha: A pequenina cruz do teu rosário:

Clique
 
 A pequenina cruz do teu rosário


Agora que eu não te vejo ao meu lado
A segredar apaixonadas juras
Busco às vezes do nosso amor de outrora
A recordar nossas íntimas loucuras
Faz tanto tempo, nem me lembro quando
A vida é longa e o pensamento é vário
Tu me mostravas vil, no idílio santo
A pequenina cruz de teu rosário
E sempre que eu a via, recordava
Do nosso amor, a fantasia louca
Todas as vezes que a pequena cruz beijava
Eu beijava febril a tua boca
Mas o tempo passou triste eu segui
Da minha vida um longo itinerário
E nunca mais, nunca mais eu vi
A pequenina, a pequenina
Cruz de teu rosário.


Muitas e muitas músicas de Carlos Galhardo ficaram gravadas em minha cabeça e tudo decorria de meu pai e de mimha mãe, especialmente depois que foi comprada a Flor de Liz que não era RCA como afirmei antes, mas Standard Eletric. Discos comprados em Palmares, em Recife e em Natal. Sempre, aqui e ali, Carlos Galhardo. 
Como separá-lo de minhas recordações de vida? Acho que a música é um botão de start para muita coisa, inclusive para relembrar e, numa estranha magia tomar os sons de vida que são alegrias e pobrezas.