quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Flávio Soares Salgueiro e João Paulo de Carvalho Vasconcelos. Uma pessoa: a morte e vida de seus sonhos no meio da droga e da rua

 

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Uma pessoa: a morte e vida de seus sonhos no meio da droga e da rua

 
Texto publicado em Contexto de 23 de dezembro de 2011 em Tribuna Independente. Para este blog, estamos utilizando material digitalizado e com gerenciamento das imagens realizado por Kellyson Ferreira, com a coordenação do Professor Antônio Daniel Marinho.  

UM PEQUENO BILHETE SOBRE OS CAMINHOS DA VIDA NESTE IMENSO
NATAL DE 2011 
Este é um depoimento dado por uma vida que se esconde em Maceió. É a história de Maria Lopes (nome fictício para sua proteção), mulher de 24 ano, cativante e inteligente e que teve abortado o sonho de ser modelo. O texto faz parte do acervo do Banco de Dados sobre Direito, Sociedade e Violência do CESMAC e foi produzido a partir da pesquisa de acadêmicos estudiosos da questão. Para Contexto, é quase uma fala trágica e poética. Contexto pede para que seja atendido o apelo de Maria Lopes e que você, ao encontrar a gente de rua, faça uma reverência aos que conseguem sobreviver às labaredas do inferno urbano. A base de Contexto, nesta edição, foi montada pelas gravações de dois acadêmicos membros do Núcleo: Flávio Soares Salgueiro e João Paulo de Carvalho Vasconcelos. O trabalho deles consistiu em registrar o depoimento, mas isso é extremamente importante, um pequeno começo.
Jingle Bell para todo mundo e um beijo no coração das Marias Lopes!
Sávio de Almeida 

Um pouco sobre a vida de Martia Loopes. Uma  vivente das ruas 

 Luiz Sávio de Almeida


 Maria Lopes é uma vida nas ruas de Maceió, desde seus tempos de adolescente. Ela é uma rueira, como parece se costumam tratar. Seu sonho era simples: ser modelo, sinal de que se via fisicamente na categoria das belezas de passarela. Ela é uma rueira, como se chamam. Âs vezes, seu depoimento parece ir além do real, como se nos revelasse o fantástico de um imaginário acossado pelo cotidiano. Nosso interesse na conversa, era sentir a ideia que ela fazia da sociedade, do poder e do Estado. Como Maria Lopes abordaria e falaria sobre o significado que essas categorias teriam para ela? Ou, também, o que ela nos daria possibilidade de inferir a partir de sua fala?

A droga entra pesada; o ESTADO é um estado-serviços e tem cara, rosto certo. O que ela fala sobre a polícia é contundente, não importando se é fruto ou não da sua construções de verdades. Seria uma vingança? Uma forma de tentar avaliar o quadro pelo que ela tem mais de acesso que é o bandido? E ela se coloca como se não tivesse escolha: para ela, do seu ponto de vista, melhor o bandido e aí, ela necessariamente tem que encontrar uma brecha para justificá- -lo. E nasce um jogo: ele mata para não morrer, como se o crime fosse a justificativa para uma cadeia de crimes. Maria Lopes está entre o bem e o mal? Na verdade, o que são bem e mal para Maria Lopes? Existe isso?

Será que Maria Lopes se vinga do Estado que a pune e o pune por uma forma típica de verbalizar as contradições? Neste depoimento, em nada pesa se o que é dito é verdadeiro ou não; importa que pode ser dito, quem sabe com uma amarra na realidade, quem sabe por achar que deve ser assim? Será que a Maria Lopes vinga-se da sociedade ao falar no estado? São muitas e muitas as perguntas que tornam a entrevista um fértil material para hipóteses.
 
E possível que haja a possibilidade de ter acontecido uma interferência errada da polícia? É sim. Mas se pode a partir daí, criminalizar a polícia? Como? O importante é que a ausência da plena cidadania, como se pode deduzir, leva a encontrar e realçar acentuadamente as marcas de perseguição pelos que dão vida ao estado. O que se fala da saúde, é o mesmo que se fala da polícia. E possível que aconteça um fato? É possível. Isto leva à crimi- nalização da saúde? A ausência de um sentido de cidadania, leva a que o quase ou não-cidadão construa a solidão cívica, como está na lógica da preferência ao bandido, seguramente exótica, mas possível.

O bandido está bem mais próximo ao perfil de vida, do que a polícia. Um estimula, o outro reprime, gerando a agonia de um mundo onde tudo é possível, onde o punitivo é bem mais efetivo do que o não-punitivo. Ela diz entender as razões do traficante, embora condene as mortes. Ela diz ser inaceitável o tipo de relação que a rua tem com a polícia. Onde estão o começo e o fim desta análise que ela realiza? A que ela conduz?

E o seu modo de perceber ou de elaborar sobre a vida. O estado está nas entrelinhas e com ele o direito e a vida. Posso de tudo isto, apenas tirar uma conclusão: o todo da rua é a parte que a ela aparece e sobre a qual ela elabora; isto deve ser a base de todo o exercício das estratégias que tem de agendar. Quando a Maria Lopes fala, não resta dúvida que aproveita a ocasião e atira. Eu chego a pensar que Maria Lopes soma em sua fala, inúmeras outras vidas de rueiros, como se ela encontrasse guarida para o que - seria de todos.
 
O interessante, é que Maria Lopes se identifica a um grupo, que, mesmo informe, demanda senso de pertença. Há um trecho importantíssimo, quando ela reivindica para todos. Em nenhum momento, Maria Lopes choraminga e até mesmo traça o perfil do político que mereceria voto: aquele que atendesse à gente da rua, uma espécie de sociedade ambulante que vive nesta Maceió. A miséria é vista no coletivo dos que perambulam, estão aqui e ali, moram lá e cá, daqueles que jamais diriam de um domicílio, apesar de tão sabido.
 
Outro ponto para ser verificado na leitura deste documento, é que ela não sai distribuindo culpas pelas escolhas pessoais que são realizadas. Por outro lado, seus apelos são dirigidos à sociedade e, aí, Maria Lopes reivindica, essencialmente, que se quebre o preconceito.
 
Maria Lopes não séria possível aqui no Contexto para dialogar conosco, se não contássemos com os  com os trabalhos do Núcleo. Maria Lopes é uma figura humana, que pede igualdade. E de cortar o coração - como diria a minha mãe -, quando se lê a imensa vontade que tem Maria Lopes, de comer uma pizza em família. Contexto jamais assumiria a responsabilidade de dá-lo como sendo obrigatoriamente verdadeiro no todo ou em parte. Seria impossível enveredar por aí.  O que sabe é simples: o depoimento deve estudado eé matéria prima para análise desta relação entre o direto, a sociedade e a violência. 
Contexto foi e como o documento, também, um mero canal de informe sobre o que pensa uma pessoa de rua. E um documento que deve ser lido com carinho e cuidado pelo estado e pelo cidadão comum. Seria ótimo que a polícia o estudasse, que a saúde o estudasse. E que talvez estejamos diante de duas perguntas aparentemente tolas: a) o que seria uma segurança própria para o rueiro que vem sendo assassinado e b) qual seria uma saúde rueira? Temos que aprender um pouco a olhar o mundo por baixo, onde, muitas vezes, as vidas se desmancham. E uma boa oportunidade ler este material produzido pelo Núcleo que é nosso parceiro. Levy-Strauss certa feita e tomando Rousseau como base, tratava do ganho hermenêutico sobre a discussão de algo semelhante a este depoimento: não importa se é verdade ou não, o fundamental é que se tem de ter uma consistente discussão sobre ele.
Mas Natal não é um tempo para tanta racionalização; é para sentir mais uma vez, o apelo fraterno que deve nos circundar diariamente.
Feliz Natal Maria Lopes! É o que Contexto lhe deseja.
 
A POLÍCIA E A IMAGEM QUE MARIA LOPES PASSA
 
Os próprios policiais estão ali. Ao invés de pegar, levar preso, não... Pega, maltrata, chuta, joga ... Quando a gente tava usando a droga, tomava o cachimbo da gente, batia na gente e eles não tinham direito de fazer isso com a gente, com nenhum drogado, com nenhum dependente químico, eles não tinham direito. Principalmente as mulheres que apanhavam por policiais homens.

Então eu dou mais valor aos bandidos do que a própria polícia. Quando deve, é diferente. Eu achó assim que cada um mantém o vício quando.pode, quando não pode, tá errado, tem que pagar mesmo. Eu não acho certo, entendeu? Pòrque ninguém tem direito de tirar a vida de ninguém, a não ser Jesus. Matam.
 
Aconteceu com meu ex-cunhado. Ele tava vendendo droga no ponto dele, não sei de onde o dono dele é, não posso dizer, e chegaram e mataram ele. Bem pertinho dela, porque ele devia droga, não pagou. Então se ele não paga o cara, o chefe, o próprio chefe manda matar ele. Porque não é dele, ele já pega de outra pessoa pra vender. Então como eles pegam de outra pessoa pra vender, ele não tem como pagar do bolso dele, ai ele paga com a própria vida, por causa de um rueiro.
 
Porque eu acho assim, uma pessoa que deve e não tem condições de pagar ou deixa o vício de uma vez ou vai pra longe, vai ver se consegue construir a vida de outra maneira e longe. Mas tem gentÈquév deve e fica ali no mesmo canto ou então vai pra outro canto e faz pior. Uma pedra e R$ 5,00. Eles dão um tempo certo pra vim pagar: “Vou dar 3 dias pra você me pagar”; depois desses 3 dias eles não vendem mais. Agora se você pagar eles vendem a você novamente, mas se você não pagar ele já vai atrás de você pra matar. Seja o valor que for. Seja R$ 5,00, seja R$ 20,00...
 
Porque eu acho assim...toda mulher de programa, ela tá ali porque precisa. Pode ser pra manter a família em casa, pode ser pra manter o vicio, como era o meu caso. O traficante quando ele quer fazer um programa com a gente, ele não vem assediar a gente, não vem pegar gente a pulso que nem a polícia faz. Eles paga, eles dá 2 pedras, 3, dá o dinheiro. Aí a gente vai e faz o programa.
 
Já, já fui estuprada. Por policias não. Fazendo programa eu já fui estuprada duas vezes. Mas é como diz a história, você vive no vício da droga só quer saber dela, quanto mais usa, mais você quer. Quando a gente entra ali no carro pra fazer um programa, a gente tá sabendo que vai, mas não tá sabendo se volta.
 
O crime que eu já pratiquei eracomigo mesma de estar vendendo meu próprio corpo por mixaria, por besteira, mas crime não. O crime que já cheguei a roubar, roubava dentro de casa, nunca roubei na rua não. O mundo da droga. Veja, algumas drogas, a gente se torna um zumbi das drogas, a gente quer mais e mais, ai a solução quando a gente num acha rápida pra se prostituir é roubar.

A vida de Maria Lopes não é sopa!
(Conversa mantida com Flávio Salgueiro e João Vasconcelos) 

Tenho 24 anos, 2 filhas. Elas moram no Tabuleiro, com a minha mãe e meu padrasto. Eu só queria saber de ficar no mundo, droga, me prostituir. Ai minha mãe disse que ia criar; aceitei, e graças a Deus estão muito  bem criadas. Nasci aqui mesmo em Maceió, Tabuleiro.

OS AMIGOS E A ONDA DO VÍCIO 

Comecei a me envolver com droga através de amigos. Não estava indo para a escola, comecei pegando loló, depois passei pra maconha, ai gerou crack Ai minha família tentou me dar apoio e eu não queria. Passava 3,4 dias sem ir em casa. Quando ia, era só pra comer e dormir. Ai, eu me deixei no mundo. Achei melhor tá na rua do que dando trabalho à família.
 
Eu me tornei moradora de rua porque eu passava de segunda a sexta fazendo programa, e nisso ficava usando droga. Nunca cheguei a ficar assim dormindo na rua não, mas morar eu morava; só não dormia, porque tinha medo, passava a noite me prostituindo e me drogando pra não dormir. Tinha medo de dormir; tirava assim um cochilo, negócio de 2 horas da tarde. Era lá na Federal. Lá nos carros, carro velho, dentro de ônibus, caminhão velho, debaixo de caminhão. Ai eu cochilava assim de tarde. Quatro horas, eu já tava me arrumando, já pra ir pra o ponto de novo me prostituir. 

UM POUCO SOBRE A DROGA


Comecei a usar droga, eu tinha meus 19 anos. E o que me aviciou mesmo e me fez sair de casa foi o crack.. Hoje eu tenho 24 anos. Eu não uso mais droga não. Tou a um mês sem usar. Só fumo cigarro normal e tomo cerveja de vez em quando. Eu tava envolvida com um rapaz, também usuário de droga e minha família não aceitava ele dentro de casa. Ai eu disse “se ele for pra rua, eu vou também”. Ai eu saí com ele pra fora. Ai, foi me trouxe pra cá. Eu fiquei aqui e ele foi embora.
 
Nunca cheguei a ser expulsa de casa; já saí por espontânea vontade minha mesmo, pra não dar trabalho a eles e por eles não terem concordado com meu ex- casamento, meu ex-relacionamento. Usei droga antes do casamento, mas ele já me influenciava também a usar, ele ia fazer usar pra me prostituir, pra usar mais ele. Eu vi que não dava certo, não ia ter futuro nenhum com ele, achei melhor partir pra outra. Ele sabia; ficava me esperando no ponto todo dia; eu que dava dinheiro a ele e ele que ia comprar a cola Eu me prostituía. -
 
Estudei até o Io ano. Meu pai era [...], minha mãe só vive tomando conta das minhas filhas... Minha mãe é dona de casa. Nunca faltou nada pra mim, graças a Deus até hoje. A família nada tem a ver com a droga; a família não. Ao contrário, eu agradeço a eles pela força que eles ainda estão me dando aqui, na hora que eu quiser voltar pra casa, eles estão de braços abertos, como minha família sempre disse, só que não quer eu no mundo das drogas novamente. Tem medo de eu aparecer morta, que é o que mais aparece hoje em dia. Quem se envolve com crack, sempre aparece morfa ou presa.

O COROA E A FILHA
 
O pai da mais velha das minhas filha, ele faleceu, era um coroa, [...] aposentado da [...], tá ai a pensão pra resolver. E o da mais nova, a vó dela é [...], só dá as coisas quando quer e minha mãe vive pela mais velha. É. E tem o meu padrasto também, que ele é [...]. Eu tinha 13 anos de idade, meu pai tinha um bar. Ai ele se agradou em mim, quis investir em mim, eu sempre fui interesseira, ai concordei. Ai pronto; ele faleceu, deixou a pensão da minha filha na justiça, foi agora recente que ele faleceu. Com 2 anos depois ele faleceu. Eu num cheguei nem há um ano, já fui logo pegando um bucho... Eu tinha 13, ele 57. A minha famflia apoiou; antes ele, do que chegasse e eu perder minha virgindade com um cara ruim...
 
Depois disso eu fui morar com ele. A família dele não concordou, a família dele nunca concordou, porque eu era nova. “Ah painho não pode não. Tá com uma menina nova, porque você pode ir preso, até como pedófilo”, e nada empatou de eu ficar com ele. Mas chegou um certo tempo que eu tava sentindo tanta vergonha dele, que ele ia me levar no colégio, que eu não quis mais ficar com ele, ai eu fugi de casa com um rapaz. Ai eu vim aparecer depois que ele já estava falecido.
 
Passei quase 1 ano com ele, engravidei dele. Criei minha filha com ele até com 1 ano de idade. Quando ela completou 1 ano de idade, eu fui embora mais outro rapaz. Ai ele ficou cuidando dela com a minha mãe, até hoje. Ele reconheceu. Minha outra filha foi de um relacionamento de um homem novo, de 20 anos, o negócio dele só era beber, não usava drogas, só beber e fumar mesmo. E também não deu certo, desgostei dele, de repente passou. Quando eu desgosto...

A IRMÃ EA RUA
 
Eu estava falando com a minha irmã, que ela também é usuária de crack... Ela não é moradora de rua. Ela mora na casa da minha mãe. A gente já saiu, já passou a morar comigo na rua. Ela foi primeiro do que eu morar na rua. Ai a gente ficou morando na rua, fazendo programa também na rua. E minha família não quer mais ela dentro de casa por causa dos erros que ela faz. Porque eu não roubava muito, mais me prostituía, meu negócio era mais me prostituir e ela era mais roubar, meter faca nos outros. Minha família não tava mais aguentando ela dentro de casa, ela é uma viciada. Eu graças a Deus eu sou uma ex, eu me considero uma ex-dependente química. E ela não, ela é ainda é uma viciada. Faz de tudo minha família para tirar esse vício.
 

A gente dormia juntas. Dormia no mesmo lugar. Ás vezes ela saia mais o namorado dela, porque ela tinha um namorado que concordava com os programas. Ai a gente se encontrava mais no ponto de fazer programa.
 
A DISCRIMINAÇÃO
 
A gente somos discriminados por a gente ser, o que a gente somos. Muita gente discrimina, não dá valor, não dá oportunidade. Eu acho assim que morador de rua, ex-dependente químico, ele tem direitos. De chegar ajudar a gente, chegar dar a apoio, de abrir as portas pra gente, porque a gente tá aqui pra recomeçar de onde a gente parou.
 
Estamos aqui pra pedir ajuda assim, pra continuar nossa vida. E pra gente não cair nas drogas e não voltar e ter um recaída era bom que todos abrissem a porta do emprego, investissem mais na arte, na cultura e assim vai... Porque quando a gente passa escondem a bolsa, a gente passa diz “uma prostituta”, ficam ali discriminando a gente dizendo “ a prostituta vai ali pro beco por 10,15 reais só pra usar o crack”.

A AJUDA DENTRO DO GRUPO
 
Não fosse a droga, eu estaria empregada, com as minhas filhas, com a minha família, com um casamento bom. Agora eu tô com outra pessoa vai fazer um mês, ele que tá me ajudando a sair das drogas, tá me dando apoio. Ele também era dependente químico, tá com um mês também que parou, depois que me conheceu, a gente se conheceu.
 
A gente parou. Assim eu to achando forças aqui e nele. Porque a gente sempre conversa, quando bate a abstinência em mim, bate nele, ai a gente senta conversa, ele pede pra mim não usar, eu peço pra ele não usar, ai gente acaba se entendendo e nós não usa.
 
O RESULTADO DA DROGA E A SAÚDE
 
A droga ela me ressecou toda por dentro, teve um momento que não tava podendo comer nada, ai eu fui, o que me passaram foi soro. Mas assim quando a gente chega no hospital com começo de overdose... Quando chega no hospital com começo de overdose, com algumas doenças através do crack, eles não fazem, deixam a gente sofrer um pouquinho, pra gente vê que a vida não foi feita de droga pra gente usar.
 
Cheguei lá com as minhas próprias amigas mesmo, que eu achava que eram amigas, mas na verdade eram só amigas pra ali mesmo no meio da droga, colegas mesmo a gente ali todo reunido usando, ai deu um branco em mim, aí eu desmaiei, aí quando eu acordei já tava lá no Pronto Socorro, já tava com o soro, injeção...
 
Na primeira vez eu fui bem tratada, mas na segunda vez eu não fui não. “Ah é um maconheiro qualquer deixa ai pra aprender, dá trabalho a mãe, dá trabalho a gente, é bom que morre logo” Disseram tudo isso. E já ouvi também muito da polícia. Quando a gente vai vê amigo morto ou uma pessoa conhecida morto que era envolvido com droga.
 
O RUEIRO E OS OUTROS
 

Tem pessoas assim que nem vocês, que ainda pensam em ajudar a gente, só que não tem como a ajudar a gente, porque a gente tem que primeiramente se ajudar.
Mas vocês também não podem ir abrindo porta de emprego pra gente. Eu vejo em vocês assim meninos que conseguiu na vida sem drogas, corajosos.
 
Esses filhinhos de papai, passando e olhando pra pessoa, filhos do cranco. Eu tinha raiva, xingava, filhinhos de papai...
xingava muito Eram pessoas que não olham pra gente, que olham com discriminação. Fico com raiva e muita. Porque a gente não tem a oportunidade que vocês têm, a gente não teve o ensino que vocês teve, porque vocês são mais bem sucedidos do que a gente.
 
UMA VIDA QUE PODERIA NÃO TER SIDO 

Teve é verdade, oportunidade que a gente mesmo jogou fora. Mas tenho raiva. É inveja... dispensei. Ah me arrependo. Hoje em dia se eu não tivesse usado droga era pra tá assim que nem vocês bem sucedida, com estudo né, com a família. Eu me arrependo muito. A gente tem que deixar. Tem o meu irmão. Ele já foi traficante, já foi preso e hoje em dias graças a Deus, primeiramente a Deus, hoje em dia ele é bem sucedido. Casou, trabalha fichado. Largou tudo que ele fazia antes e tá com um novo emprego.
 
Tudo é possível? Eu tenho esperança de mudar, de ter uma vida melhor. Do mesmo jeito que o meu irmão, que era pior do que eu. Era traficante e mudou a história dele, a vida dele. Porque que eu não posso mudar a minha? Ele usava e vendia. Se ele mudou a vida dele, que a vida dele tá melhor do que antes, porque a minha não? To me espelhando nele.
 
A QUALIDADE DO VOTO 

Votar, eu voto. Mas eu ainda estou sem documentos, mas eu voto. Porque hoje em dia até pra gente tirar novos documentos a gente tá sem oportunidade. Eu escolho por aquele que faz alguma coisa, pelo que faz alguma coisa pela cidade, pelas pessoas, que ainda ajuda, chega junto. Porque hoje em dia eu não vejo, não tenho um. Vou dizer assim, se eu tivesse com o meu título agora, se fosse a hora de votar em algum, não votaria em nenhum,porque eu não vejo nenhum fazer nada, só promessa. Porque era pra eles botar mais casa de recuperações, era pra... Porque tem tanto terreno vazio ai que... Da Caixa mesmo, pra prefeitura mesmo que não fazem uso, poderiam botar casas pra pessoas que moram na rua.
 
A MARCHA DA ESPERANÇA
 
Eu sinto esperança. De vocês mostrar, publicar e vê se alguém é capaz de fazer alguma coisa.
 
A educação a gente tem direito. Podia botar um professor que viesse pra cá ou arrumasse vaga pra gente no colégio que a gente também tem direito. Sobre a saúde, a gente poderia cada um, todos nós ter o cartão do SUS, a gente não tem. Ai como a gente não tem, a gente não é atendido ou é atendido pelo jeito que eles bem querem.
 
Tenho notícia do povo que viveu comigo. Teve uma aqui que mataram uma, porque tava roubando pra manter vício. Não tava mais conseguindo fazer programa de magra, de feia, porque a droga deixa a gente assim.
 

Eu tive notícia de que mataram uma que a gente andava sempre muito junta eu e ela. E eu tento evitar de saber deles, porque eu oro por eles, mas eu tento evitar. Porque isso me dói, me machuca saber que eu não posso está ali, sabendo que eles não tão tendo a oportunidade que eu tô tendo.
 
Eu tô tendo a oportunidade de dormir. Tenho água pra tomar banho, boa ou ruim tenho comida pra comer, eles não. Então eles não tão tendo isso. Tão lá no sereno, levando chuva, no relento, sendo maltratado pela população, pela polícia mesmo.
 
EU TENHO UM SONHO
 
Eu nunca pensei em felicidade não. Pra mim felicidade nunca existiu. Quando eu comecei a voltar a usar droga, a família acabou pra mim, saiu tudo desmoronando, os relacionamentos nunca davam certo, por causa, através da droga. Nenhum momento... Nem na hora que tava usando a droga. Porque eu usava e no mesmo tempo eu terminava de usar, ia chorar, arrependida. Mas como ela falava mais alto do que eu, era mais forte do que eu, ai eu voltava a fumar novamente.
 
Ah antes do crack eu era feliz. Tinha uma vida legal com a minha família, passeava, era uma famíl ia, né? A gente se reunia final de semana, saía pra pizzaria, ai eu era feliz antes do crack. Depois que eu comecei a usar o crack... Só tô sabendo o que é felicidade agora porque eu saí do crack.
 
Hoje eu me sinto feliz. Com todos os obstáculos que eu ainda estou enfrentando, discriminação ainda. Ah tem gente que passa por mim ah...família mesmo diz: “Eu não dou um mês que ela vai voltar pras drogas” e não dão nada por mim. É mais eu tô de cabeça erguida, tentando mostrar que eu vou conseguir pra aqueles que não deu nada por mim ou não deram, pra mostrar que eu vou conseguir tudo de volta. Que eu vou consegui meu sonho, realizar meu sonho, ser modelo. Meu sonho é ser modelo, linda e maravilhosa. Desde sempre eu tive esse sonho de ser modelo e eu vou conseguir.
 
UM APELO A FRATERNIDADE
 
Eu só peço pra pessoas que têm dinheiro, os filhinhos de papai, o povo que tem dinheiro, que ajude, que ajude os moradores de rua, e os... nem os aviciados, porque nem todos são ruim, nem todos estão ali pra roubar não, nem estão ali porque quer. Abram as portas de emprego, tirando da rua, dando alimentação...