terça-feira, 4 de agosto de 2020

Luiz Sávio de Almeida. Papos de bar: o poder das enchentes





















 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 25 de maio de 2014

Papos de bar: o poder das enchentes 

Luiz Sávio de Almeida

Floods, inondazione, inondation, inundaciones,



          A água de um rio quando se apavora, explode como se fosse bomba, sobe pelos barrancos e devora tudo o que aparece no caminho. O rio enche e segue rompendo todas as convenções,  transformando as ruas em leito de  um caudal que a tudo derruba, suja, enverga. As águas do rio passam sempre devagar, mas têm momentos e lugares em que se enfurecem. Quando a água de um rio tem raiva, a gente deve ter sempre muito cuidado.

O Rio Una com raiva, em Palmares, Pernambuco
           Não posso dizer que vi muitas enchentes. Do Rio de São Francisco, somente vi uma e ainda tenho a foto do meu pai e do tio Lauro andando de canoa na Rua do Comércio. Deve ter sido uma cheia grande.  Do Rio Una, somente vi subir pelo quintal de nossa casa, o demais das cheias foram por notícias, até que veio a televisão e deu-me as estrelas de presente. 
Bicas
           No entanto, do  Córrego de São José (Bicas, Minas Gerais), eu sofri mesmo, acordado com as águas dentro de casa, eu nos braços de meu pai e posto em cima de uma mesa; o medo de ambos com a possibilidade de cobras, a ida para uma casa que ficava em um alto. Disto ou distos (que  foram duas vezes) eu não esqueço, sobretudo da água a entrar cada vez mais e o caminho que tomamos para chegar a lugar seguro.
          Não tenho ideia dos estragos e
nem sei se senti medo, pois estava sob os cuidados de meu pai e de minha mãe; ele velando por mim e ela por minha irmã pequena, ainda de braço, depois selva-gemente assassinada, quando adulta, em São Paulo, numa marcha de vida que começou em Penedo onde nasceu e foi gerada, até o pátio de um supermercado paulista onde foi jogada como um fardo de vida mais ou menos humano.

           Não sei a razão, mas bateu na minha cabeça,  os versos de uma música que era cantada por Carlos Galhardo: A pequenina cruz do seu rosário!  Minha mãe era um disco de 78 rotações a repetir:


Faz tanto tempo, já não me lembro quando,

 A vida é longa e o pensamento vário...
          
       Mas nosso assunto é cheia, enchente, outro tipo de problema e outro tipo de tristeza. A dor de A pequenina cruz do seu rosário é diferente de outro tipo que a vida nos ajuda a catalogar. Todos nós temos uma espécie de arquivo de dor e de arquivo de alegria. Vez em quando a gente abre a gavete. Hoje eu quero as dores cívicas.


         Faz tempo, deu-se uma das mais famosas cheias do Mundaú, com as águas descendo a varrer todos os pontos e pontes, numa enxurrada de tudo, talvez uma enxurrada de coisas e  vidas. Passado um tempo, decidi  ver os estragos, bem de perto e tomei o rumo do Murici. Fotografei. Não era a cheia, mas resultados. 

Existe uma Nossa Senhora das Enchentes? 
Vou te mostrar umas fotos. Eu estava triste; apesar da boa companhia, eu não conseguia sorrir. Somente via perguntas em todos os rostos, como se de tanto perguntar, as gentes de Murici tivessem sumido pelo medo das águas. Eu não consigo viver sem amar a minha gente. Sabe menina? Eu não consigo viver sem amar meu povo. Eu sou alucinado pelo meu povo, pelo que ele sente, pelo que ele sofre... Meu coração, menina, guarda o mundo das Alagoas bem dentro dele, como se eu mesmo fosse um cofre do destino de todo o mais da gente alagoana.
          Eu saí daqui, para aprender a ficar. Alagoas é minha escolha, da mesma forma que gosto de manga rosa, sabendo que existe a manga espada. Veja esta criança, menina. Olhe para ela, para o direto dos olhos em busca de um horizonte... Quanto a vida remexerá neste rosto lindo, cândido e triste?  Uma calçada, muro, engrenagens... Você sabe menina, quantas vezes ela chorarará de não-cheia e do sim-de-vida?


          E o casal? Será que apenas a cheia une. O homem olha para a direita, ela para a esquerda, o menino no braço e ela, com a mão nos queixos e faceira, interroga o destino?  Sei lá; sei apenas que ela se fez bonita para sentar-se naquele alicerce de muro... Descansou os pés, assumiu os brincos e quem sabe estaria pensando no dia em que sua sorte deixaria de ser governada pelas águas do rio.


























          Tá vendo estas casas? Conversei com um morador e ele me contou a sua saga. Era um Pastor e me disse do barulho das águas chegando e das orações que fazia. Você sabe, menina, quem morava nestas casas? Eu não sei e acho desnecessário saber. 
          É tempo de terminar a cerveja. Quer mais um copo? Garçon, vem cá! Onde fica a arena dos gladiadores em Murici? Mostra a ela, que eu vou ficar sentado, olhando a parede, ver as sombras e me acostumando com a ideia: quando o tempo passa, passa mesmo. E nem deixa rastro? Não... Às vezes o tempo se enfurece como as águas se enfureceram nos lados do Mundaú. 
          Então menina? Fica com a foto deste gladiador das enchentes e até outra cerveja, outro mar e outro bar.