terça-feira, 25 de agosto de 2020

Itawi Albuquerque, Retratos da pandemia

 

Retratos da pandemia

Itawi Albuquerque

 – Jornalista

 Costumes e hábitos que eram normais mudaram em poucos dias. Minha agenda de pautas e eventos que já estavam marcados foi cancelada ou adiada, afetando minha situação financeira. Por sorte, tenho um emprego com carteira assinada e pude trabalhar de forma remota. Fiz matérias por meio de videoconferência. O grande problema foi a falta de um horário regrado para trabalhar, o que muitas vezes aumentou a jornada das atividades. Realizei algumas pautas durante esse período sobre o coronavírus em Maceió para um site local, tomando todos os cuidados de segurança.

Lembro que nos primeiros dias do isolamento social eu e minha esposa acompanhávamos os noticiários pela TV e nos sites sobre a situação politica e econômica causada pelo coronavírus. Mas isso estava nos deixando com um misto de sentimentos ruins, frustrações e mais preocupados com a nossa contaminação. Fiquei com os horários das refeições e do sono desajustados. Utilizei muito os serviços de delivery para compras de comida, feira mensal, compras de remédios, etc.

Desejo a cura ou a vacina do coronavírus. Mas, enquanto esse momento não ocorre, é hora de planejar como será esse novo normal.

 

 

A principal avenida de Maceió, a Fernandes Lima, estava irreconhecível. Mesmo em dias de feriados, ou em qualquer outra data, não sei se seria possível fazer fotos com tão pouco movimento de carros

27 de março de 2020 - Fiz umas fotos na orla da Ponta Verde. O dia estava muito bonito, me bateu uma vontade imensa de tomar um banho de mar, mas não era permitido por causa do decreto do governo local. Porém, pude pisar na areia, ouvir o som das ondas e ver como é bela nossa praia vazia. Confesso que retirei a máscara para respirar fundo sem medo de uma contaminação

 



03 de julho de 2020 –  O primeiro dia de reabertura do comércio no Centro de Maceió foi marcado por uma grande presença de pessoas que circulavam sob uso de máscaras (uso obrigatório), barreiras sanitárias para controlar o fluxo e evitar aglomerações. Era possível ver as pessoas formando filas com demarcações de distanciamento em frente às lojas e aferição de temperatura




03 de julho de 2020 – Cliente tem temperatura medida no acesso a loja como medida de prevenção ao coronavírus no centro comercial da cidade de Maceió

 

Quem é

Itawiltanã Camelo de Macena Albuquerque, conhecido como Itawi Albuquerque, é jornalista formado pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal) em 2014. Natural de Maceió, tem 31 anos, é casado e não tem filhos.  Atua como fotojornalista freelancer e atualmente trabalha na Assessoria de Comunicação do Tribunal de Justiça de Alagoas. (Elen Oliveira)


Memória da Pandemia nas Alagoas 


Elen Oliveira 


Quando eu ingressei na Ufal, em 1991, o professor Luiz Savio de Almeida já era uma lenda. Nos corredores do antigo CHLA, hoje ICHCA (Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Arte), ele se postava a dar conversa a quem se aproximasse com a mesma atenção que dedicava a palestras, mesas de discussão e entrevistas. Entre 2008 e 2009, trabalhamos junto no antigo O Jornal, onde ele propôs a abertura de um espaço dialógico da universidade com a sociedade, por meio da publicação de artigos acadêmicos. Entusiastas do debate e da pluralidade, o então diretor, Gabriel Mousinho, e o então editor-geral, Roberto Tavares,  cederam espaço ao Espaço, nome dado ao suplemento quinzenal publicado entre setembro de 2008 e 2012, quando o veículo foi extinto. À época editora-executiva e de Suplementos, eu editei a publicação até 2009 com Alexsandra Vieira, que era editora do caderno de Cultura, o Dois. Reformulado, tornou-se posteriormente Contexto, no jornal Tribuna Independente, até materializar-se em Campus, o suplemento semanal que é veiculado no jornal O Dia e reproduzido n’o Campus do Savio, o blog de múltiplas falas com o qual colaboro esporadicamente.

 O longo parágrafo de introdução foi escrito para contar como chegamos a Jornalistas e a Pandemia, proposto pelo professor Savio como parte do projeto Memória da Pandemia nas Alagoas, que ele está a construir desde abril e que reúne relatos vindos de representantes dos povos indígenas, artistas, intelectuais e integrantes de áreas diversas sobre o atual momento. Ele propôs, e eu aceitei, que organizássemos uma seção para compor essa construção feita a muitas mãos. “Quero deixar um imenso painel para um pesquisador no futuro”, informa o pesquisador, que há tempos constrói fundamental acervo da memória sobre Alagoas.
 

O blog pode discordar no todo ou em parte do material que publica





 

 



Eline Juvita de Lima. OS POVOS INDÍGENAS E A PANDEMIA

 


OS POVOS INDÍGENAS E A PANDEMIA

Eline Juvita de Lima

Índia Wassu-Cocal

 Historicamente falando, os povos originários desse território denominado por seus colonizadores de “Brasil” tiveram seu processo histórico marcado por constantes episódios cercados de atos de violências e crueldade, dos quais resultaram em consequências devastadoras para esses povos.

Uma história sangrenta, escrita, literalmente, com o sangue de inúmeros “indígenas”, que perderam tudo que consideravam de mais sagrado: Sua liberdade, seu território, seu direito de ter sua própria identidade. O processo de repressão perdurou, desde a invasão do território até os dias atuais, onde a sobrevivência desses povos segue uma trajetória marcada por lutas constantes e batalhas diárias travadas principalmente contra o preconceito e a ganancia instaurada que se apresenta sem limite, em meio a um país extremamente capitalista, onde o lucro e o acúmulo de riqueza são o foco de uma parcela da sociedade detentora do “poder”, que domina o Estado, dita regras e leis que cada vez mais têm desfavorecido os povos originários.

Desde o período da invasão, muitas mortes foram causadas, muitos povos foram dizimados através de massacres e dos inúmeros atos de violência. Outros modos de viver foram impostos. E com os invasores, além do terror que trouxeram com seus atos bárbaros, também causaram o adoecimento de muitos indígenas, através de doenças físicas como gripes, DST, entre outras; também causaram o adoecimento da alma, como a depressão. Muitos perderam a vontade de viver, e, consequentemente, ocorreram ondas de suicídio como forma de fugir da catástrofe que se instalou na vida desses povos.

Seguindo esse processo doloroso, os povos originários foram aprendendo a sobreviver, muitas coisas tiveram que ser mudadas: costumes, línguas, moradia, religião. Novos costumes foram introduzidos.

 Surgiram movimentos, simpatizantes da causa indígena. Algumas politicas foram criadas. Discutiu-se e se aprovou um modelo de atenção a saúde dos povos indígenas cujo conteúdo fala de execução de uma atenção primária com respeito às especificidades de cada povo. Embora, desde sua criação, ainda não seja exercida em sua plenitude, conforme seu conteúdo, a criação da Política Nacional de Atenção a Saúde dos Povos Indígenas (PENASPI) amenizou a situação de sofrimento no quesito “saúde”.

Então, de repente em um momento no qual se pensa que as questões estão dominadas, que os programas criados e executados são eficazes na redução de danos, na prevenção e promoção da saúde, a ponto de diminuir a mortalidade entre os indígenas... surge uma nova doença, que se espalha por todo mundo e que rapidamente chega à aldeia, e que oferece perigo letal.

O mundo para; o Estado elabora protocolos que implica mais uma vez na mudança de hábito, e começa uma nova guerra, desta vez contra um inimigo silencioso e perigoso, que inesperadamente chegou com a capacidade de provocar mais uma vez o extermínio de vários povos.

É perceptível o conflito de pensamentos, os dilemas vivenciado pelos membros da comunidade, que apesar de vários meses com o mesmo assunto em pauta de discussão, têm presenciado o novo coronavírus  se alastrando rapidamente nos territórios. Apesar de alguns líderes políticos não facilitar nem incentivar a população quanto à necessidade de seguir as medidas de prevenção, contamos com equipes de saúde guerreiras nos territórios, que trava lutas diárias contra a COVID19, executando diversas ações no enfrentamento contra esse inimigo silencioso que já provocou a partida de muitos parentes que transitam no território nacional.

É possível observar que a medida de isolamento tem sido um desafio, pois é uma prática que embora necessária para o momento de pandemia, contradiz tudo que foi defendido até os dias atuais, que é a privação do direito de ir e vir.

Hoje, as aldeias se dividem em situações diversas: de um lado, tem uma parcela do povo que temem a doença, que procura seguir o que está sendo orientado a fazer. Do outro lado, existem aqueles que banalizam a situação, ignoram os riscos e se colocam em uma situação que causa perigo para toda comunidade.

Aguarda-se ansiosamente que a tempestade passe, que se encontre uma cura. Mas no meio disso tudo, existe uma certeza: a vida não será mais a mesma. Só quem passou pelo drama de ver seus parentes adoecendo, correndo risco de morte, quem vivenciou o pavor de ser encaminhado ao hospital, de ficar em quartos sombrios sem ter o direito de vivenciar a agonia na companhia de um rosto familiar, sabe o peso psicológico dessa situação. Não há dor maior do que a perda precoce de um ente querido.

O isolamento social é uma necessidade do momento, mas que tem sido um gargalo, no que se refere a seu cumprimento. Há muitas resistências entre as pessoas notificadas como casos suspeitos e até mesmo entre os casos confirmados. Se percebe também um descaso de muitos representantes de seguimentos da sociedade diante da gravidade que a situação exige. Tais comportamentos favorecem o crescimento dos casos confirmados e do adoecimento de grande parcela da população.

A movimentação no território indígena mudou, um clima tenso foi instaurado. Tudo que se faz tem um misto de incerteza e preocupação. Vários questionamentos têm sido feitos. Pensa-se na execução das atividades cotidianas, nas formas de subsistências. Como sobreviver em meio a uma pandemia? Como praticar os rituais de forma segura? Como viver carregando uma incerteza que não tem hora para acabar? O que realmente é seguro?

Todos esses questionamentos fazem parte do leque de pensamentos complexos que rodeia a cabeça de muitos indígenas, e de outros seguimentos da sociedade. Os povos indígenas fazem parte de um grupo historicamente marginalizado, que tem inúmeras lutas pendentes no que diz respeito a questões territoriais, educacionais e até mesmo de saúde. Povos estes que têm o hábito de lutar pela participação efetiva nas discussões que dizem respeito à construção e efetivação de políticas públicas. Hoje, vivem uma situação que exige uma urgência de ações protetivas; porém os espaços de discussões se encontram praticamente fechados, impossibilitando o avanço em muitas questões. Por mais que existam recursos tecnológicos, a essência dos indígenas está interligada a seus rituais, as grandes reuniões onde reflete a importância de sentir o calor humano, além das praticas de suas danças e rituais de curas que os fortalecem e os fazem sentir parte do que é mais sagrado, onde existe uma ligação direta com a cosmologia, refletidas em crenças que envolvem o sobrenatural. Esses rituais ocorrem em meio a tensão do momento e, muitas vezes, são ainda mais criticados por conta das possíveis consequências que as aglomerações podem causar.

A pandemia impulsionou a utilização de outros veículos de comunicação que interligam algumas pessoas – a exemplo das lives –, mas fica longe das práticas tradicionais e do modelo de discussão utilizados pelos povos.

A aldeia silenciou; a presença de expressões de temor ainda é evidente na face de muitos. Tem sido longos meses de tentativas de adequações a qual a situação exige. São tempos de espera, de incertezas. Muitas questões estão paralisadas, muitas caminhadas estão deixando de ser realizadas por conta da necessidade de conter a propagação da doença, dos temores que ela provoca.

É fato que lidar com o desconhecido é algo que na maioria das vezes apavora, porém, está escrito na trajetória desses povos o constante convívio com situações inusitadas, que sempre exigiram atenção, disciplina e adoção de comportamento que muitas vezes foram decisivas no processo de sobrevivência. Hoje, a situação é complexa, cheia de contravenções. Existem atuações contraditórias entre os próprios governantes, que desarticula e induz processos sociais que vão no sentido contrário as medidas de proteção que o povo deve praticar. Talvez tal ação faça parte de um processo perverso, que tenha o objetivo de extermínio da massa pobre, pois são esses que tem mais dificuldade de acesso aos serviços públicos, em uma situação denominada de “normal”, imagine em um momento de pandemia no qual estamos vivendo. Mais de cem mil pessoas morrendo, dentro desses números, muitos indígenas inseridos. Muitos não tiveram direito sequer a lutar em um leito de UTI, que teve sua luta encerrada sem acesso as todas as possibilidades de tratamento.

Não tem sido dias fáceis, nem para a população, nem tampouco para os profissionais de saúde, que vivem entre a “cruz e a espada”. São muitas mudanças que o momento exige. A cada dia, tem sido colocados novos testes de sobrevivência, e o que serve de motivação é a esperança de que dias melhores virão; que cada um vai transitar livremente por seu território sem ameaças, sem sustos, sem o fantasma dessa doença que tem perseguido e tem feito muitos guerreiros e guerreiras tombarem – inesperadamente – acelerando o curso natural da vida, que é o bem mais precioso que cada ser humano carrega.

 


sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Carla Alves. OS INDÍGENAS KARUAZÚ E A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS: ESTRATÉGIAS E AÇÕES DE ENFRENTAMENTO

 

OS INDÍGENAS KARUAZÚ E A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS: ESTRATÉGIAS E AÇÕES DE ENFRENTAMENTO

Carla Alves, indígena Karuazú                                                                                     

Professora da Rede Municipal de Ensino Básico de Pariconha-AL, Colaboradora na luta pela implementação da Educação Escolar Indígena na aldeia Karuazú"

 

Com a pandemia do novo coronavírus, as relações sociais entre as pessoas têm sido reconfiguradas. Hoje, “não dar as mãos” é sinal de união; “não visitar” é sinal de cuidado; “não querer estar perto” é sinal de amor. São ações inversas do que costumávamos fazer, mas, em tempos de pandemia, os significados dessas ações são essenciais para um bem maior: combater o vírus, salvar o máximo de pessoas. As políticas de ações dos governos em todo o mundo consistem no isolamento ou distanciamento social, o uso de máscaras, a higienização pessoal etc. “Quem puder fique em casa, enquanto não surge uma cura para este mal”. São medidas tomadas para combater a disseminação do COVID-19.

Diante deste cenário de pandemia, os hábitos cotidianos mais simples se tornam complexos, por exemplo: visitar um parente próximo, sentar com os amigos para conversar e se divertir, comemorar aniversário com festa, ir ao mercado, a padaria, a farmácia, a consultas em clínicas médicas etc. se tornou um desafio a nossa própria capacidade de enfrentar e superar medos e angústias, frente a um inimigo invisível e não pouco letal que é o novo coronavírus.  

Em Alagoas, a mobilização de enfrentamento à pandemia culminou na criação de um comitê de crise, responsável pelo controle das informações e emissão de Decretos, conforme o avanço do vírus. Os municípios também criaram comitês de crise, adotando ações de enfrentamento com Decretos que viabilizam juridicamente a instalação de barreiras sanitárias nas entradas dos municípios e fechamento de estradas vicinais, a fim de impedir o avanço do vírus em suas respectivas áreas administrativas.

No município de Pariconha não foi diferente: estradas vicinais que antes davam acesso ao município foram fechadas com o intuito de estabelecer somente duas opções de acesso à região, passando pelo controle das barreiras sanitárias estabelecidas na divisa do município com Estado de Pernambuco e o Povoado Marcação, divisa do município de Pariconha com o município de Água Branca, Alagoas. Com o aumento de casos no Estado de Pernambuco, o acesso ao município foi fechado permanecendo somente uma opção de acesso a região. As restrições nas barreiras com respeito ao acesso de pessoas oriundas de outros Estados ou mesmo municípios vizinhos foram intensificadas; mesmo pessoas naturais de Pariconha, mas que moravam em outros municípios, não podiam entrar na região, salvo para serviços essenciais. Várias medidas de segurança, de prevenção e enfrentamento foram e ainda são tomadas para combater o avanço do vírus no município. Mas, mesmo diante de tantas restrições e isolamento, este mal chegou à região.

            Com os primeiros casos no município, as relações sociais entre as pessoas tornaram-se ainda mais restritivas: distanciamento social, isolamento local, fechamento de instituições religiosas, escolas, lojas, bares; além do uso obrigatório de máscaras, suspensão das feiras livres, fechamento de mercados aos domingos, proibição de festas e de aglomeração de pessoas de qualquer natureza, seja nas ruas, nas casas, em reuniões, encontros religiosos, ou em manifestações culturais e rituais.  Com essas restrições, as três aldeias indígenas localizadas no município de Pariconha – Jiripankó, Katokinn e Karuazú – também foram proibidas de quaisquer atividades culturais e religiosas.

Na aldeia Karuazú, localizada entre os povoados Campinhos e Tanque, as festividades e reuniões foram proibidas, a exemplo das reuniões mensais da Associação Indígena Karuajé, onde sempre se discutia e buscava soluções para as questões da área da saúde, educação escolar indígena, processo de demarcação de terras, toré e rituais, o “terreiro ficou vazio”. Diante do cenário de Pandemia, os Karuazú buscam estratégias para manter a unidade e luta já antes travada pelo direito a saúde, terra, educação e pela valorização cultural e étnica. Com isso, uma das ferramentas utilizadas para viabilizar a continuidade das ações de enfrentamento político, ante aos problemas enfrentados pela comunidade, é o uso da internet, e principalmente das redes sociais, que têm se intensificado entre os indígenas.

 Neste período, em que as restrições impostas pelo distanciamento social são essenciais para o combate ao avanço do vírus, a comunidade indígena Karuazu criou grupos de whatsapp para manter a comunicação e interação entre os indígenas: um grupo com participação de toda e/ou parte da comunidade, com a finalidade de informar, discutir e buscar soluções referentes a assuntos ligados a aldeia; outro grupo da Associação Indígena Karuajé para tratar assuntos referentes à associação, já que as reuniões mensais também foram suspensas; além dos grupos que já existiam e passaram a ser ainda mais utilizados nesse período de pandemia.

 Referente a área da saúde, os Karuazú conquistaram, depois de muita luta, a Unidade Básica de Saúde Indígena Karuazú com prédio próprio na comunidade, que já está em funcionamento desde o mês de junho, com algumas precauções, como agendamento de consultas e controle do fluxo de pessoas para evitar aglomerações. Antes, a Unidade Básica de Saúde dos indígenas karuazú funcionava na cidade, numa casa alugada que foi adaptada para o atendimento médico. As dificuldades eram grandes, tanto para a equipe médica como para os Karuazú, pela distância do atendimento e falta de estrutura física. Devido à pandemia, os Karuazú ainda não puderam festejar a inauguração de sua unidade de saúde, conforme o costume local, mas o sentimento de orgulho por mais uma conquista é notório na comunidade.

A equipe médica multidisciplinar, assim como os agentes de saúde na comunidade têm trabalhado incansavelmente para evitar que o vírus avance na aldeia.  Neste sentido, as primeiras ações de combate a pandemia na comunidade consistiram na divulgação de informações sobre o vírus, com o objetivo de orientar os Karuazú sobre a importância do isolamento e distanciamento social, do uso de máscaras e dos sintomas da doença. Em parceria com a prefeitura, foram distribuídos kits de máscaras de tecido para todas as famílias indígenas Karuazú, entre outras ações de combate e controle do COVID-19. Infelizmente, houve dois casos da doença na comunidade, um indígena que foi curado e uma indígena que lamentavelmente veio a óbito. Até o presente momento não foram mais notificados casos da COVID-19 entre os Karuazú.  

O fato é que não tem como isolar a comunidade, porque as terras ainda não foram demarcadas. Os Karuazú espalhados entre os povoados Tanque e Campinhos dividem o mesmo espaço com os não índios, dificultando assim o isolamento da comunidade neste tempo de pandemia. Os karuazú lutam por mais de duas décadas pelo direito à terra, pela demarcação de seu território – um direito constitucional –, porém negado pela má vontade política dos governantes deste país. Mesmo com a conquista da Unidade Básica de Saúde, com prédio na comunidade, muito ainda falta referente à demarcação de terras e a implantação da educação escolar indígena na comunidade.

No atual momento, as barreiras sanitárias foram retiradas, e as estradas vicinais de acesso ao município de Pariconha estão sendo abertas; o comércio já foi liberado; as instituições religiosas já podem funcionar com 30% da capacidade do espaço físico; as pessoas já podem circular livremente nas ruas; no entanto, os cuidados de proteção como o uso de máscaras, higienização das mãos e a proibição de aglomeração de pessoas continuam. Os casos ativos na cidade diminuíram: no boletim epidemiológico do dia 18 de agosto constam 155 casos confirmados ao todo, 140 curados, 14 ativos e 1 óbito. Aos poucos a cidade de Pariconha vai retomando a “normalidade”. As escolas ainda permanecem fechadas, a proibição das feiras livres continua. Em nossa comunidade, ainda não há uma data prevista para a realização de reuniões e das atividades culturais e religiosas.

Em suma, mesmo em tempos de pandemia, os Karuazú, assim como os Katokinn e os Jiripankó permanecem resistentes, lutando pelos seus direitos e buscando novas estratégias de enfrentamento ante aos problemas, dificuldade e incertezas. Diante de um cenário não muito animador, os indígenas Karuazú, são capazes de se organizar, de se adaptar (caso seja necessário), e de buscar estratégias para sobreviver diante das adversidades – contrárias a sua sobrevivência, enquanto etnia indígena –, de lutar e ser protagonista de seu próprio processo histórico.

 

 

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Luiz Sávio de Almeida e Viviane Rodrigues. A evidência das grotas no urbano de Maceió

 

  domingo, 1 de junho de 2014

Maceió: a cidade e suas grotas. Falas da periferia!

 

Estes textos foram publicados em Contexto de 25 de setembro de 2011 em Tribuna Independente. Para este blog, estamos utilizando material digitalizado e com gerenciamento das imagens realizado por Kellyson Ferreira, com a coordenação do Professor Antônio Daniel Marinho.

 


Um pequeno bilhete sobre as grotas de Maceió

Luiz Sávio de Almeida

 O  Museu Cultura Periférica é um dos parceiros do Contexto e desenvolve projeto sobre a história das grotas em Maceió, começando por mapear as que se estabeteceram no Jacintinho.As entrevistas são conduzidas por Viviane Rodrígues para preparação de um livro, onde memória e referência ao local se estabelecem. Hoje, teremos um pouco sobre a Grota da Bananeixa. Contexto destaca o esforço da pobreza para construir o seu lugax urbano e a decência do povo que vive nas grotas.
A Tribuna Independente ao veícular os depoimentos presta serviço à comunidade do Jacintinho e a todo o Movimento Periférico de Maceió.

A evidência das grotas no urbano de Maceió

Luiz Sávio de Almeida e Viviane Rodrigues

A evidência das grotas em Maceió decorre da ocupação de áreas que hoje são consideradas de periferia, em face do processo de urbanização e ocupação do solo deslanchado na década de sessenta do século passado. As causas são conhecidas e decorrem da ancoragem da pobreza, tanto a gerada urbanamente como a transferida do campo pelos impasses da estruturara fundiária e organização da produção.


A periferia de Maceió não pode ser considerada homogênea; tem desníveis internos de renda muito fortes, como se pode verificar no Jacintinho. Para tanto, basta notar a diferença das construções que estão feitas nas vizinhanças da praça nova, a que chamam de Mirante. São residências que se assemelham às que se encontram edificadas na Pitanguinha, havendo, portanto, uma paisagem distante do grosso do bairro que se derivou, justamente, da opção pobre para residência.

O Jacintinho - no que vamos chamar de sua parte chã -, não é homogêneo, sendo possível identificar diversas porções territoriais, cada uma com suas características próprias. Uma das divisões é vista nas áreas do mercado e da feirinha com a estrutura de serviços que serve ao bairro e, inclusive, os prédios dos supermercados que são considerados grandes estabelecimentos, verdadeiros marcos de referência espacial e que vivem ao lado dos chamados mercadinhos e, ainda, das antigas formas de bodega.

Super, hipo e feirantes fazem um grande contexto de comércio que vara o bairro, sobretudo a partir do viaduto em direção ao Barro Duro; a feirinha, praticamente, faz a fronteira entre eles. Caminhando do viaduto para o Canal 5, o comércio diminui de intensidade, ficando uma parte mais residencial. É nas proximidades do Canal 5 que fica a Grota da Bananeira, uma de tantas que fazem o lugar, devendo, desde logo ficar claro, que as grotas tendem a ser mais pobres do que a porção de cima e elas são hoje em dia, praticamente, vistas, especialmente como matéria da crônica policial. Está sendo lançado um estigma sobre seus moradores.

Contexto traz hoje, duas figuras da grota, contando parcelas de vida; são entrevistas realizadas com o intuito de montar um grande painel da história do bairro e que os autores estão montando para o Museu Cultura Periférica. A áreã chama-se Bananeira pela razão óbvia de plantações. A Coronel Paranhos cortou o espaço em duas partes, uma a leste e outra a oeste, com a Benilda falando desta última. É como se a Benilda olhasse para o lado do Reginaldo e o Eucalixto ficasse vendo o mar.

São duas histórias do lugar, mencionando detalhes sobre o que foi assentar a Grota e, delas, destacamos alguns pontos como a fracionamento da área, a procura da Grota como área pobre, a integração paulatina de serviços, a integração também paulatina ao contexto da cidade, a revelação de elementos do cotidiano, o papel político da religião, o lazer, a moralidade, a dureza da vida.

O modo urbano de Maceió foi ocupando as grotas e deixando os locais dos severamente empobrecidos.

GROTA DA BANANEIRA: A FALA DE Benilda Lima dos Santos

A Coronel Paranhos como divisória

Eu sou alagoana, nascida em Maceió, 1957. Nasci na maternidade Sampaio Marques. Morei na Rua João Ulisses Marques de traz do cemitério São José até os meus nove anos. Minha madrasta morreu deixando três filhos para criar, foi quando meu pai tinha uma casinha ali descendo aquelas duas ladeiras do Jacintinho e que antigamente a gente conhecia tudo ali como Aldeia do índio, porque não era muito civilizado, só tinha Grota: Pau D arco, Bananeira, Reginaldo, fazíamos parte daquela região.

Um pouco da história

Fui morar na Grota da Bananeira que o dono loteou o sítio e começou a vender os terrenos; meu pai foi o primeiro morador. Lá o povo dizia que tinha uma mula sem cabeça. Eu tinha muito medo do seu Artur, o homem que era dono: era alto, magricelo, branco, com dois olhos enormes bem azuis, era esquisito. Ele me dava bananas, muitas frutas, lá tinha de tudo, chegava de supetão e dizia: Toma. Nunca o fitei nos olhos, tinha medo. Ele morreu com mais de cem anos.
O sítio da Grota da Bananeira era toda aquela região ali do canal 5, atravessando o que hoje é a Avenida Coronel Paranhos até o outro lado; descendo pela Rua Jardineira e pela Rua Belém, encontra-se o Reginaldo; subindo tem-se o Centro Santo Antônio e as duas ladeiras que hoje são asfaltadas; antigamente não eram. Ali onde existe o Cepa Quilombo (Rua Santa Luzia) era uma lavanderia pública, onde nós lavamos roupas. Ali próximo ao Mirante, onde hoje existem as apresentações do folclore, era uma lavanderia pública. 
Tudo mundo lavava’ roupa porque não tinha água encanada. Nós descíamos a grota, a gente chamava de “escorrega lá vai um”, para comprar água perto do Buganvília e da Grota do Pau D 'Arco. Tinha uma cacimba com água boa, o cara ali fez muito dinheiro. Também tinha a caixa d'água do Seu Manezinho, que abastecia o Jacintinho; quando quebrava uma peça íamos buscar no Riacho Reginaldo ou descíamos para o Rego do Sapo.

Energia e transporte

Poucas eram as casas que tinham energia; tinha várias casas que ainda usavam o candeeiro. Os sítios que foram surgindo como a Grota da Bananeira e que depois foi urbanizada. Tinha um matagal de jurubeba, palha do ouricuri e muita planta medicinal, onde tirávamos para fazer vassoura, onde hoje é o Conjunto José Peixoto. Surgiu em 1967, foi o primeiro conjunto.

Em 1968 colocaram o primeiro ônibus do Jacintinho da empresa Santa Maria. A estrada era de barro, levantava um poeirão, no verão só Jesus tinha piedade, Santa Maria rodando e meu Deus do céu. Só tinha um ônibus, mas foi a alegria do povo do Jacintinho. 
Começamos a ter valor!
No canal 5 era um campo que não tinha nada de civilização, era um campo de jogar. O time Palmeiras foi quem inaugurou ali. Antigamente a diversão que nós tínhamos na época, 1967, 68, 70, era esse time chamado Palmeiras... Todas as mocinhas da época ficavam naquele campinho paquerando seus namorados; o meu como sou muito católica, religiosa, saiu do nichozinho de Santo Antônio, numa das quermesses. Conheci seu “bendito” Orlando aos 14 anos e tenho 40 anos de casamento.

Descida da Grota leste

Não tínhamos igreja, era capelinha, depois com a vinda de padre Adriano e Silvestre (já morreu) foi que o Jacintinho começou a ter um valorzinho. Esses padres eram holandeses, chegaram ali na Vila Paroquial do Poço, na paróquia do Senhor do Bomfim, mas assessoravam a capela de Santo Antônio. Não sabíamos o que era comunidade, nos ensinaram. Não sabíamos o que era uma festa, só tínhamos a Catedral, Igreja do Livramento, Nossa Senhora das Graças, mas ainda existia aquela separação entre a elite e os pés de chinelo. Os pés de chinelo não desciam para a elite, e a elite que era Catedral, Senhor do Bomfim, Paróquia de Nossa Senhora das Graças, de São José (Trapiche) não subia para o Jacintinho. O Jacintinho era conhecido como Aldeia do índio porque, dizem os antigos, que viveram índios ali. Não alcancei essa época.
Com os padres, surgiu o projeto que hoje é a Igreja Nossa Senhora da Conceição, mas antigamente eles construíram como Santo Antônio. Para mim eles trouxeram para o Jacintinho a civilização e a esperança, as mocinhas da minha época aprenderam o significado de comunidade e a ter responsabilidade. Fundamos o grupo jovem da igreja: Eu, Mar- luce, Nadilma, Fernando, Joab- son, Ademildes, Beto (falecido), Antônio (falecido). Nós tivemos um avanço muito grande como pessoas, como católicos e foi dali que a gente viu a presença mesmo da igreja... Trouxeram umas irmãs, tudo era para essa igreja. Eles construíram a Igreja de Santo
Antônio. Em 1979 veio à construção do Centro Comunitário Santo Antônio e a transformação da igreja em paróquia.
Em 1979 começaram os projetos de urbanização do Jacintinho. Para construir a pista, foi necessário demolir a lavanderia pública e várias casas, cortaram barreiras para fazer a leste e oeste. Hoje temos uma avenida belíssima, e de um lado o Mirante e do outro as casas. Asfaltaram e construíram a Avenida Coronel Paranhos.

Lazer e namoros

O Jacintinho não tinha essa violência, a
não ser em época de carnaval quando o bloco Caveira descia arrastando tudo e todas. Onde é a sede do CEPA Quilombo (rua Santa Luzia) e o Mirante Cultural (no Mirante Kátia Assunção) a gente conhecia como Engenho de Dentro. Lá tinha o bloco Caveira e a Escola de Samba Treze de Maio (tradicional) - do pai da Sônia, depois ficou com ela, agora com as irmãs. O que existia muito eram raparigas; rapariga tinha muito, porque se perdiam com os “dondoquinhos”. Tinha a sede do Palmeiras que era a famosa gandaia e no Triunfo ( no final da rua), antigas no tempo de gandaia. Gandaia mesmo; agora falo como o Sávio de Almeida, que não incesta o sururu; aprendi com ele a não ter papa na língua. Era o tempo da famosa gandaia de prostituição.
A sede do Palmeiras ficava na travessa que dá para o Canal 5. O pai do Helcias (Coordenador pelo Centro de Educação Ambiental São Bartolomeu - CEASB junto à Comunidade da Vila Emater II (antiga favela do lixão), o finado Biu, era sócio e abria a gandaia que era o divertimento das moças para dançar. Lá você não podia cortar cavalheiro; eu dançava lá porque ia com um amigo-irmão que dizia: “Você gosta tanto de dânçar que vou te levar para a gandaia”, ai eu dizia: “Filho da peste, vai me levar para a gandaia!”. Um dia papai me pegou, levei uma pisa da “bouba” porque estava lá na gandaia dançando. Na Rua Santa Luzia tinha a gandaia JK, o Forró do Carrero próximo a Rua Triunfo, a Real na Rua Floresta e a Pioneira na Avenida Coronel Paranhos.

A ideia de civilização

A feirinha surgiu já com a civilização, o bairro foi crescendo. Eles viram a necessidade das pessoas venderem as frutas que tiravam dos seus sítios naquela pista, depois se tornou um mercado. Hoje é um mercado. A gente comprava antes no mercado velho (Levada). A mudança principal da minha época foi quando lotearam o sítio e começou a se formar as ruas; cada um foi comprando seus lotes e fazendo suas
casas, que não tinha casa própria ficou beneficiado porque era barato comprar os terrenos. A chegada do ônibus também foi muito importante. Vale ressaltar o surgimento do Canal 5 que tinha o programa da D. Fernanda que era voltado para a comunidade, escolhia meninas das escolas públicas para se apresentarem nele.

Tristeza e alegria

O fato mais triste para mim foi quando o Seu Calixto matou o Afrânio, responsável pela caixa d'agua, por ter ciúmes da filha. O Seu Calixto também “comeu” as três filhas. Esse fato não aconteceu na Grota da Bananeira, mas causou comoção a todos. Na Grota não houve nada tão triste que me marcasse. Naquele tempo não havia violência na grota, só sabão (as pessoas namoravam muito).
O fato mais alegre foi construírem a Igreja de Santo Antônio. Não houve nada na grota tão feliz para falar. Era uma vida de dificuldade porque todos eram pobres, a maioria lavava roupa de ganho, trabalhava em casa de família, mas era tranquilo. 


Grota da bananeira: a fala de José dos Santos Eucalixto

Meu nome é José dos Santos Eucalixto, tenho 68 anos e moro
faz  37 anos na Grota da Bananeira. Nasci em São Luiz do Maranhão, morei até os meus oitos anos de idade. Minha mãe me teve de noite e no outro dia morreu, quando tinha oito anos meu pai botou a pes te de uma mulher dentro de casa que batia na gente. Tudo o que a gente fazia, ela contava ao velho e a gente ia para o cacete, ai pensei: “Não é assim”. Fugi de casa por causa da madrasta, até a data de hoje. Cheguei a Alagoas debaixo de um caminhão, agora o motorista era um primo meu que vinha para Maceió. Tinha muito irmão aqui, mas não procurei ninguém porque iam querer me levar de volta e a surra seria dobrada.

A saga familiar
 

Fui trabalhar no Farol de jardineiro numa casa. Quando estava com 14 anos, a mulher morreu, fiquei sozinho de novo. Comprei uma casa na Pitanguinha, com 14 anos já tinha minha casa e uma mulher. A mulher foi embora e me deixou sozinho, arranjei outra, vendi a casa da Pitanguinha e fui morar no Pilar, mas ela adoeceu e perdeu o juízo. Passava uma semana boa e quatro meses doente, me separei e vim morar aqui.


Cheguei aqui com 31 anos, só tinha três casas com a minha. Quando a gente chegou aqui só tinha capim, ai a primeira coisa que fiz foi um sítio de banana e de cana de açúcar, também tinha uma horta de tomate, cebola, pimentão.

Serviços públicos

A gente pegava água perto da Buganvília tinha um cacimbão lá, onde passa o Reginaldo. Tinha o rapaz aqui, o Renato, quando não tinha a gente descia para o Riacho Reginaldo ou para a Mangabeira (Riacho do Sapo). A água a gente se juntou, fizemos um abaixo assinado e formos à Casal, que colocou água na primeira grota e de lá para cá ficou de resolver e até hoje não botou. A gente se juntou, compramos os canos e puxamos lá do cano mestre, mas pela Casal mesmo não tem, a obrigação era eles trazerem o cano até aqui. Primeiro veio à luz, agente se juntou fez um abaixo assinado e a CEAL veio. Antigamente era "gato”, gambiarra, a gente puxava lá de cima da pista.


Quando chegava uma família, eu dava um terreno se o cara fosse conhecido ou através de um que me pedia. As casas eram de taipas, aqui ainda tem muita assim. Quem tinha dinheiro para pagar pedreiro, pagava quem não tinha a gente se juntava e construía a casa. A divisão das ruas a gente foi fazendo. A maioria do povo veio do interior; trabalhava de pedreiro e servente.
Quando vim para cá, só passava dois ônibus por dia, quem tinha dinheiro ia de ônibus que não tinha ia a pé. Tinha gente que tinha medo de andar de ônibus por que na ladeira de pedra aqui na Legião às vezes o ônibus descia de ré. Antigamente a gente batia tudo de pé, era melhor, a gente descia para ir tomar banho de rio de água doce por traz da Mapel, chamasse Rego do Sapo. Esse rego de água podre que agora passa por ai era água doce, hoje é que está uma carniça que não presta.

A gente tinha de arrastar para o Pronto Socorro lá embaixo na feirinha, ou para o que ficava por detrás da Santa Casa, em último caso o do Trapiche. Agora a saúde está boa, porque tem posto por todo canto, aqui mesmo na Rua Jardineira tem um, na Feirinha tem outro, na Pista Nova, na Maravilha que era aonde a gente ia, mas agora está em reforma. No mercado tem outro bem antigo.

 Tristes e alegres

Tiveram muitas mudanças aqui, a prefeitura calçou. Não tinha luz, a CEAL botou, não tinha água a Casal botou. Para vista do que era hoje é bom. Aqui não tem associação de moradores, mas tem uma patota, os mais velhos, que quando a gente quer uma coisa faz um abaixo assinado: Eu, Seu Vicente, Ciço, outro Vicente, Carlos, Tânia, Reinaldo (hoje é que é o responsável por aqui).

O fato mais alegre que aconteceu aqui era quando não existia bagunça.Todo vida foi bom aqui, não tem fato triste. Onde chego sei viver, respeito e considero todos. O lugar quem faz é você, não é ninguém. A mudança maior que teve aqui foi vê essas casas todinhas de tijolo; antes era tudo de barro, a minha também era de taipa e agora estoiu construindo de tijolo.



terça-feira, 11 de agosto de 2020

Lúcio Verçoza. Balanço


 
Meu pai, menino
Balanço

 Lúcio Verçoza

Para o meu pai 


Na estrada, só eu e ele acordados. Descemos a ladeira São Gonçalo com os dois em silêncio, escutando a voz do Milton Nascimento:

De novo na esquina os homens estão. Todos se acham mortais, dividem a noite, a lua e até solidão.  

Depois da ladeira uma longa reta, e no meio da reta ele apontou para a margem da pista. Havia um imenso pasto verde e morros ao fundo. – Foi atrás daquele cocuruto de morro que eu nasci. Atrás daquele morro era o Sítio Balanço. Ele não lembrava bem como era o sítio. Recordava apenas do cheiro, de imagens dispersas que pareciam sonhos e de histórias contadas pelos mais velhos. Não sabia se eram imagens criadas pelas memórias herdadas ou se eram imagens vividas. Deixou o sítio quando era uma criança pequena. E desde então, nunca mais retornou.
            O carro aos poucos foi se afastando do morro, se aproximava da entrada da cidade de Porto Calvo. O cocuruto do morro que escondia o Balanço não era calvo. Eu tentava gravar a silhueta do cocuruto e imaginava meu pai criança se balançado debaixo de uma árvore frondosa. Foi nessa hora que entrou o som da faixa Morro Velho:

Filho do branco e do preto, correndo pela estrada atrás de passarinho. Pela plantação adentro, crescendo os dois meninos sempre pequeninos.

A voz do Milton vinha como que detrás do morro, e os olhos do meu pai se encheram de lágrimas. Ele não falou mais nada. Eu senti o que ele estava sentindo e ficamos calados. Cada um chorando a sua maneira metida a de homem, enquanto meus irmãos e minha mãe dormiam.

Filho do senhor vai embora, tempo de estudos na cidade grande. Parte, tem os olhos tristes, deixando o companheiro na estação distante.

            Seguíamos em direção a Recife, sem tocar mais no assunto. Não precisava. Sabíamos que éramos cúmplices. Ele do desejo oculto de voltar à infância e eu por ter visto, ainda que por alguns instantes, o meu pai criança. E era uma criança tão doce que se permitia chorar na frente do filho, mesmo que escondido.
            Ainda hoje quando eu desço a São Gonçalo, fico procurando a silhueta do cocuruto do morro. E traço planos de um dia subir o morro e ir procurar o que restou do Balanço, de vasculhar rastros da infância do meu pai, de encontrar a sombra de uma jaqueira que já não há, as memórias adormecidas e as trilhas do que ele é e do que eu sou. E faço promessas a mim mesmo de voltar ao Balanço junto com ele.

Não esqueça, amigo, eu vou voltar. Some longe o trenzinho ao deus-dará.
 

domingo, 9 de agosto de 2020

Luiz Sávio de Almeida. Chorinho: Maceió: Grutinha

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Chorinho: Maceió: Grutinha



Esta roda de choro acontece aos sábados no Grutinha






Yatan Lima dos Santos AQUI O TORÉ PAROU, OS PÁSSAROS CONTINUAM A CANTAR: OS XOKÓ NA LUTA CONTRA A PANDEMIA DO COVID-19.



AQUI O TORÉ PAROU, OS PÁSSAROS CONTINUAM A CANTAR: OS XOKÓ NA LUTA CONTRA A PANDEMIA DO COVID-19

Yatan Lima dos Santos - Indígena Xokó
Graduando em Geografia Licenciatura, UFAL-Sertão.

Para entendermos um pouco sobre o caos que estamos vivendo nesse momento epidêmico, é preciso voltar um pouco no tempo; é preciso considerar pouco mais de 500 anos de luta, história, massacre, genocídio e resistência indígena. Refletir sobre o passado nos faz compreender melhor como se deu as contaminações de diversas doenças, desde a invasão do território brasileiro até hoje. Dessa forma, fica mais fácil falar sobre o COVID-19. Resistir ao colonizador não foi tarefa fácil, mas éramos muitos, nossos arcos e flechas chegaram a vencer os invasores em muitas batalhas.
Nesse contexto, nossos ancestrais lutavam bravamente em defesa de nossas terras, de nosso povo e pela própria sobrevivência. Resistir foi preciso, vencer o colonizador se tornou impossível, pois nossos parentes tinham que lutar contra o opressor e contra as doenças trazidas por eles, essas abriram espaço para os invasores, destruindo povos inteiros. Poucos conseguiam escapar, os sobreviventes ou eram capturados, ou buscavam abrigos junto aos grupos aliados.
As histórias de lutas dos povos indígenas do Brasil contra as doenças que assolavam as etnias, remontam aos primeiros contatos com os europeus. Com eles, entranhados em seus corpos sujos veio uma arma mortífera invisível, o vírus. Este, através dos contatos com os colonizadores, transmitiu a nós povos indígenas diversas doenças infecciosas: sarampo, gripe, catapora, varíola, pneumonia... dizimando vários povos originários que aqui habitavam. A colonização do Brasil, se fez possível ou pelo menos de forma mais acelerada, devido ao contágio de doenças que reduziu drasticamente a população indígena.
As doenças trazidas pelos europeus, que assolavam nossos ancestrais séculos atrás, atravessavam continentes, e continuam atravessando ainda hoje. Os indígenas foram os que mais sofreram com as diversas pandemias (e ainda sofrem); isso porque a forma de vivência dos povos indígenas é bem diferente da vida cotidiana dos não indígenas. Essa forma de vida fica bem clara quando uma doença contagiosa chega às aldeias, como é o caso do COVID-19. Esta doença, transmitida através do contato, logo ganha proporção diante de um povo cujo costume é estar sempre junto, pois somos uma família onde compartilhamos tudo: as rodas de conversas frequentes com os mais velhos em baixo de uma árvore, ou envolta de uma fogueira, ou no Ouricuri, nosso lugar sagrado dos momentos de orações e dos nossos cantos, o Toré.
O coronavírus que apareceu lá na China, hoje se encontra em meio aos indígenas de todas as aldeias do Brasil. Há muitos indígenas infectados, isentos de recursos médicos, sem acompanhamento adequado das equipes de saúde, precisando urgentemente de medidas que os ajudem a passar por esse momento de caos pandêmico. As aldeias mais afetadas se encontram na Amazônia, lá os recursos médicos são mais escassos, isso porque não podemos contar com o atual governo que pouco se importa com a saúde indígena. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), deveria ser mais atuante, no entanto, estamos à mercê do novo coronavírus até que algo seja feito.
A aldeia indígena Ilha de São Pedro, etnia Xokó, está localizada no município de Porto da Folha, Sergipe. Tem uma população aproximadamente de 400 habitantes. Os Xokó estão com as portas da aldeia fechadas para os não índios, uma decisão da comunidade para evitar que o COVID-19 entre na aldeia. Não é inesperado que os Xokó estejam com medo dessa doença, pois as notícias que a mídia traz a cada dia é alarmante. Então, a fim de conscientizar a população indígena, o Polo Base de Saúde da Aldeia organizou uma equipe e montou uma barreira sanitária; essa equipe de saúde foi formada somente por integrantes da aldeia, com uma enfermeira, dois agentes indígenas de saúde (AIS), dois agentes indígenas de saneamento (AISAN), dois técnicos de enfermagem, um técnico em saúde bucal, e pessoas que não fazem parte da equipe de saúde, mas estavam prontas para ajudar.
Essa equipe foi formada com o seguinte propósito: monitoramento, orientações de prevenção, busca ativa de sinais e sintomas para o COVID -19. A enfermeira de saúde local, da própria aldeia, com sua equipe, passava em todas as casas dando instruções e orientações de como evitar o contágio do novo coronavírus. Essas medidas preventivas ajudavam no entendimento e a encarar a realidade de forma mais segura; no entanto, mesmo com uma equipe bem preparada na conscientização dessa nova doença, era impossível olhar nos olhos das pessoas e não sentir o medo em seus olhares, elas estão assombradas, como se não houvesse palavras que as confortassem. O medo ficava estampado na cara dos indígenas, e piorava quando chegavam notícias que parentes de outras aldeias, haviam perdido sua vida para o COVID-19.
A ciência mostrava o índice de mortalidade, tanto para índios como para brancos, indicando que os mais velhos eram os mais vulneráveis ao vírus. Então, olhar para nossos anciãos e saber que a qualquer momento poderíamos perdê-los, era angustiante. O COVID-19 nos reprimiu de muitas coisas: como o futebol – por ser um esporte bastante praticado por quase toda juventude da aldeia –, as rodas de conversas embaixo das árvores durante o dia ou a noite sob o brilho da lua. Por se tratar de uma doença transmissível através do contato, ela nos afastou também do nosso ponto de encontro mais importante da aldeia, nosso Ouricuri, lugar sagrado onde cantamos e dançamos o Toré.
Numa determinada sexta-feira, um índio Xokó se assusta e deixa a comunidade inquieta ao receber a notícia de que um colega de trabalho não indígena foi diagnosticado com o novo coronavírus; para a tranquilidade do povo Xokó, ele testou negativo para COVID -19. Outro dia, não muito distante desse acontecido, uma índia que reside numa cidade próxima à aldeia, e que no momento se encontrava na comunidade, teve notícia que seu cunhado testou positivo para o novo coronavírus. Ela havia tido contato com ele há poucos dias, isso deixou a comunidade tensa, mas a tranquilidade veio logo, após ela testar negativo. Os casos não pararam por aí. Um homem não índio, casado com uma índia, morador da comunidade, havia tido contato com um colega de trabalho que testou positivo para o novo coronavírus, ele estava doente e todos os sintomas nos levavam a crer ser o COVID-19. Ele foi isolado em sua própria casa, com os cuidados da equipe de saúde local, foi examinado e testado negativo.
Esses fatos e relatos marcaram nossa aldeia. Foi como se nos preparassem para o que estava por vir. Os Xokó estavam muito apreensíveis, tensos com a nova situação.  O medo dos anciãos, das crianças e de todos da comunidade era percebido através do olhar. E como foi previsto por quase todos da aldeia, o novo coronavírus chegou à comunidade no dia 12/06/2020, com um parente que testou positivo para o coronavírus. A preocupação do povo e o medo aumentaram ainda mais, mas a equipe de saúde fez todo o monitoramento da pessoa infectada, dando orientações aos familiares, esposa e filhos, a fim de evitar o contágio nos mesmos. O paciente ficou isolado em sua própria casa com sua família, e não apresentou sintomas graves que viesse a interná-lo.
Após o primeiro caso confirmado, em menos de quinze dias já havia sete casos confirmados; a equipe de saúde tentou conter o contágio, mas parece ser inevitável, pois até esse momento a SESAI não havia mandado uma equipe de saúde especializada para combater o COVID-19. Só depois dos sete casos, a SESAI enviou no dia 22/06 uma equipe composta por três profissionais, uma enfermeira e duas técnicas de enfermagem para dar suporte a nossa comunidade; a partir daí, os cuidados foram redobrados. No dia 02/07 de 2020, a Universidade Federal de Sergipe (UFS) veio à comunidade realizar testes sorológicos que identificam os anticorpos do novo coronavírus. Dos 194 testes realizados em indígenas Xokó, 47 apresentaram resultados positivos para anticorpos do novo coronavírus. Antes desses testes realizados pela UFS, havia sete casos apenas confirmados pela secretaria municipal de Porto da Folha/SE. O teste sorológico não detecta o novo coronavírus, apenas os anticorpos produzidos pelas pessoas ao ter contato com o vírus, diz a UFS.
Dos resultados obtidos pela UFS, foram 141 negativo, 34 apresentaram IgG + e estão possivelmente curados, 10 estavam com IgM + e poderia estar na fase inicial da infecção, 7 foram indeterminados, e 3 apresentaram IgM +, que pode estar em fase de recuperação. Com esses resultados, o povo Xokó entraram em desespero e todos passaram a temer o novo coronavírus. Alguns tentam esconder o medo que sentem, outros preferem não acreditar. Estamos lidando com uma ameaça invisível, enfrentar o vírus que assombra toda a população não é nada fácil, e há quem diga que essa doença não existe, que é uma farsa; porém, essas mesmas pessoas que dizem não acreditar no coronavírus, são as que mais fazem uso de máscaras e álcool em gel.
Podemos sentir o medo nos mais velhos e nas crianças. Esse medo ficou mais evidente quando a equipe de saúde passava nas casas dos indígenas dando o resultado dos testes, e mesmo aquelas que não apresentavam sintoma algum, ainda assim sentiam medo. Uma criança com aproximadamente 11 anos de idade, ao receber o resultado que estava com anticorpos do novo coronavírus, supostamente curado, correu para o seu quarto chorando com medo do COVID-19. Só depois dos resultados divulgados pela UFS, a SESAI envia outra equipe de saúde, dessa vez junto com enfermeiras e técnicas de enfermagem e um médico. Até este momento, foram 28 casos confirmados e todos curados. Segundo a enfermeira Jéssica (Xokó), o monitoramento foi realizado pela equipe da SESAI durante 14 dias. A nossa comunidade continua lutando até que esse vírus esteja totalmente controlado em todo o território nacional.