sábado, 11 de julho de 2020

D.C. Vanderlei. Pandemia e Isolamento social: A cidade arquipélago e sua busca pela lanterna dos afogados




Pandemia e Isolamento social: A cidade arquipélago e sua busca pela lanterna dos afogados

Por D.C. Vanderlei

Estudante trabalhador e amante da geografia

            Aos meus 6 anos ocorreu um daqueles momentos revolucionários da vida, e veio com um déjà-vu. Foi num velho sítio da Santa Amélia, à beira da mata do Parque Municipal, uma área coletiva compartilhado por 5 casas entre mãe, avós, tios, padrinhos, primos. Foi ali, naquela paisagem bucólica do banco de madeira em forma de lua crescente, que cresci; que tive noção do discorrer do tempo e do valor da socialização.
            Me lembro do entusiasmo e receio que me afogaram em tal descobrimento, o qual me fez puxar o primo Nanã pela barra da camisa; o ingênuo Alan pela cacunda; o avô, até onde eu alcançava. O caçula queria atenção! E do ponto de vista dele, espécie de autoproclamado legítimo descobridor, a revelação era digna de grande genialidade, feito de invejável sagacidade, somente igualável aos predicados de um extraordinário gênio cientista, um suprassumo do saber, um oráculo. Como gosta de pronunciar a nova geração: “Top das galaxias”. Eureca!!
            O que era pra mim grande feito, era para eles motivo de altos gritos e gaitadas. – Tolo!, eles diziam. Ao sair do meu complexo de Peter Pan, onde o limite da cronologia é um dia após o outro, eu fui apresentado a uma das maiores crises existenciais da nossa era: o caráter líquido do tempo.
            Sim. Oh Grande Poderoso Cronos! Magnífico e paradoxo rei dos Titãs! Tua percepção que nos trás clareza e, concomitantemente, pode nos deixar diante de uma depressão tão profunda e dissecada quanto aquela do vale do parque municipal.
            E se a geografia nos revela que em todo vale há um curso d’água, nesse abismo onde nos enfiamos, o fluxo do rio representa o curso normal do tempo; a água, a vida. Às vezes é preciso represar o rio aqui, pra liberar ali, senão dá enxurrada. Sabe bem disso o autêntico brasileiro, aquele vítima do “saneamento trágico”, sempre atento à previsão do tempo.
            Porém por aqui, desde os tempos de Cabral,  é muito comum se confundir planejamento e metáfora, e essa é razão pela qual tanta gente nesse país nada muito enquanto morre de sede. A metáfora apresenta um viés pragmático, quando estudamos os efeitos do coronavírus no corpo de um doente terminal. Ele é levado a morte com os pulmões cheios de líquido, afogado em si mesmo. Um paradoxo terminal.

            A primeira vez a gente nunca esquece

            A primeira vez que ouvi falar da associação Corona Virus/Covid-19 foi como quase todo leigo em virologia ou estranho ao serviço secreto: pelos meios de comunicação. Naquele 06 de janeiro deste ano, uma matéria da BBC internacional falava sobre “a misteriosa pneumonia que preocupa a China” e que pelo, então, recente posicionamento das autoridades chinesas, não se tratava da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, na sigla em inglês).
            No dia seguinte, enquanto ouvia a rádio, dirigia para o trabalho, e pisava fundo  no sinal amarelo pra escapulir do vermelho, feito um diabo que corre da cruz, porque esse era o espírito do velho cotidiano: desafiar o tempo. Cazuza escreveu certa vez algo sobre o desafio de transformar o cotidiano em poesia, como forma de vencer a melancolia. O cotidiano nos deixa cegos, escravos do tempo.
            Não há dúvida de que o “trabalho dignifica o homem”, mas honrando sua etimologia latina (tripalium), ele pode significar tortura e maldição. Como bem explicaram Marx e Engels, através do trabalho o homem pode mudar e moldar a natureza e a si próprio, edificar a cultura e a sociedade; mas não obstante disso é preciso romper com o idealismo e a alienação. O trabalho humano nos diferencia    dos deais  pela ação intuitiva e repetitiva dos animais, e é por isso que quando não refletimos sobre nossos atos, apenas reproduzimos o cotidiano, viramos tal ser coisificado.    
            A despeito do que dirão alguns saudosistas, a verdade é que no mundo pré Covid-19 o cotidiano já cegava as pessoas. Sua consequente estupidez permitiu que, em pleno mundo globalizado,  alguns relativizem e distanciem algo que acontece logo ali, do outro lado do mundo: “Mais uma gripizinha!”, “Coisa da  China”.
            Inegável. No mundo pré-covid-19 havia uma melancolia digna dos anos de chumbo: Guerra Fria entre Washington e Moscou na Guerra Civil da Síria e na questão Coreana; Amazônia em chamas e democracia em vertigem no Brasil; ataques a diversidade e bairros afundados pelo capitalismo voraz na retirada da Salgema em Maceió. Mas foi neste cenário que a humanidade encontrou o sinal vermelho.        
            Em 23 de janeiro, a mídia em geral já chamava a atenção pelos 213 mortos em decorrência da já chamada COVID-19 no Extremo Oriente. Àquela altura havia 9 casos suspeitos no Brasil. O que setores conservadores e conspiratórios da sociedade chamaram de “alarde da imprensa”, no dia 30 de janeiro foi classificado como Emergência Internacional pela Organização das Nações Unidas (ONU).
            Todavia, de certa forma, a pandemia logo foi incorporada ao “jeitinho brasileiro”. Matéria da Folha de São Paulo de 08 de fevereiro destaca que “Mulher é presa em Unidade de Saúde do Rio de Janeiro por mentir que estava com coronavírus para furar fila”.
            Em 20 de março, o congresso aprovou na primeira votação por videoconferência da história do legislativo federal, o decreto de Estado de calamidade pública. Naquele mesmo dia, o Governo de Alagoas decretara, pela primeira vez, situação de emergência em todo o Estado em decorrência da pandemia.

Isolamento Social

            E falando em  paradoxos, redundante destacar o quão frustrante e necessário  é o isolamento social, especialmente pra nós, seres gregários. De um lado, o deixar de viver: a angústia pela privação da liberdade, a impressão de perdermos  preciosos dias (meses) de nossas vidas, em plena era do tempo líquido. Do outro, a luta pelo sobreviver: medidas de restrição, são sim, estratégia fundamental na ordem do dia; é o que nos prova os exemplos de países que hoje se encontram menos expostos a pandemia, como Nova Zelândia e Alemanha (dentre outros fatores).
            Não distante disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reforça desde o anuncio da emergência internacional que o isolamento social é a melhor alternativa contra o coronavírus. Definindo o objeto, isolamento social (ou distanciamento social) consiste em uma prática de saúde pública que tenta tardar a contaminação na população, já que diminui o contato entre pessoas doentes e saudáveis.
            Entretanto, desde 11 de março deste ano, data em que a ONU reconheceu a pandemia de COVID-19, especialistas ressalvam que as medidas de isolamento social não impedem a transmissão em si. Seu objetivo é na verdade, tardar essa transmissão, mitigando a explosão dos casos e o colapso dos sistemas de saúde.
            É verdade que não é a primeira vez, nem mesmo neste século, que uma emergência de saúde pública em escala mundial foi decretada: Pandemia de H1N1 em abril de 2009; disseminação internacional de poliovírus, em maio de 2014;  surto de Ebola na África Ocidental, em agosto de 2014; vírus zika e aumento de casos de microcefalia e outras malformações congênitas, em fevereiro de 2016; surto de ebola no Congo, em maio de 2018; já receberam tal status. Por outro lado, nenhuma dessas emergências possui um caráter tão mortal quanto o Covid-19.
            Considerando os dados internacionais de 05 de julho de 2020, publicados pela ONU/OMS no “Painel da Doença de Coronavirus (COVID-19)”, o numero de casos chega a 11.108.580 e 587.085 mortes. Conforme a própria ONU, como o estudo se baseia em dados oficiais disponibilizados por cada país, é muito forte a hipótese de que a realidade seja bem mais grave. Como se sabe, alguns países têm baixa taxa de testagem e/ou governos de forte viés ideológico reacionário, com negação da ciência.
            No Brasil, por exemplo, há um abismo no índice de testagem apresentado por estudos mais rígidos 2,28 pessoas a cada grupo de 100 mil habitantes; e pesquisas mais otimistas 7,66 pessoas a cada grupo de 100 mil habitantes (dados de 28/06/20).
            O que se sabe, certamente, é que o país testa pouco. Dos testes RT-PCR feitos no país, 36,68% têm resultado positivo para COVID-19. Segundo especialistas, esse índice muito alto ocorre porque se testa principalmente os casos mais graves, o que por se só denuncia o caos da saúde pública. A cargo de exemplo, Austrália e Nova Zelândia, também potências do Hemisfério Sul mas com gestão exemplar na crise, têm 1% de testes positivos, conforme o painel da Universidade Johns Hopkins (EUA).
Pleonástico dizer que no Brasil o isolamento social nunca foi seguido à risca. Principalmente por conta de uma visão econômica imediatista e seu discurso de negacionismo científico que assombra esferas do Estado e setores poderosos da sociedade.
Do norte ao sul, a quarentena minou na velha metáfora “pra inglês ver”. Pode-se dizer que se nas primeiras semanas houve um cenário menos visível de desrespeito ao estado de emergência, posteriormente, esse desrespeito foi logo escancarado. O trânsito das cidades atesta um isolamento social fictício, na prática, distante do próprio sentido da expressão. E esse pleonasmo é fundamental para entender como o Brasil foi parar no Olho do Furacão desta crise.
           
“A história se repete pela primeira vez como tragédia. A segunda, como farsa.”

Já falei que no banco a sombra do antigo sítio da Santa Amélia, a socialização era regra e com ela afloravam histórias e contos. Meu avô, saudoso Domingos Vanderlei, gostava de depois da peleja, ao fim da tarde, sentar no velho banco e contar suas histórias para quem quisesse ouvir. Eram narrativas de infância, que viveu ou ganhou dos mais velhos.
E por muitas vezes, contou as histórias de dirigíveis ianques que invadiram os céus das Alagoas; de uma tal faca abençoada que seu pai recebera de –Padim Padre Ciço-; ou ainda do tempo em que as pessoas morriam aos montes nas portas das casas, a espera do socorro médico ou crentes em um remédio dito milagroso.
Nesse caso, ele narrava algo que foi dramaticamente detalhado aqui neste mesmo jornal e onde o leitor teve a oportunidade de testemunhar como a anti-ciência foi definitiva: a gripe de 1918 (espanhola), capaz de levar a morte milhares de brasileiros, inclusive um presidente eleito, e dar as calçadas de Maceió uma conotação de Necrotérios.
Ainda naquele confuso 1918, às pressas foi criado aquele que é até hoje o maior cemitério público da cidade, o São José. E 102 anos depois a historia se repete, a prefeitura se apressa para definir uma nova área para o crescente número de vítimas do COVID-19 na capital alagoana. 
O Brasil é hoje o 2º maior epicentro da pandemia no mundo, perdendo apenas para EUA, nosso Big Brother do norte e seu governo, por vezes, parceiro no negacionismo científico e populismo conservador. Coincidência? Já falei aqui da melancolia retrô dos anos de chumbo que assombram nosso tempo, resgata-se na prática ao slogan da ditadura militar “ninguém segura este país” e, faz-se jus a famosa frase de Karl Marx em 18 brumário de Louis Bonaparte: “A história se repete pela primeira vez como tragédia, na segunda como farsa”.
            É neste sentido que dissernimos que o Brasil vai ao encontro da tradicional política Paraguaçu e do “jeitinho brasileiro”. O carro sempre à frente dos bois, o relaxamento antes do isolamento propriamente dito. No protocolo internacional, a revisão das medidas de restrição são consequente a famosa “curva do gráfico de casos”, no Brasil a revisão é concomitante ao recorde no registro de casos.
            Segundo o consorcio de veículos de imprensa (G1, O Globo, Extra, O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e UOL), só nas 24h que se seguem das 20h do dia 03/07 (Sexta-feira),  até as 20h do dia 04/07 (Sábado), foram 1.111 óbitos no Brasil. Isso equivale a queda de 3 aviões do Modelo Boing 747 (o 2º maior do mundo) lotados de passageiros. No dia  05 de julho havia registro de 1.539.081 casos confirmados e 63.174 mortes (Dados painel da ONU/OMS).
            Aqui, a aplicação relativa de tais medidas pode ser sintetizada nas versões customizadas da quarentena. Coisas como “isolamento vertical”, “isolamento inteligente” e “isolamento itinerante”, se antecedera a qualquer indício do achatamento da curva no país. Em números, a pandemia de 2020 já é uma versão muito mais piorada daquela de 1918, já representa mais que o dobro das ±30 mil mortes provocados pela gripe espanhola no País.

A corda arrebenta sempre no lado mais fraco
 
Importante dizer, essa dicotomia tem certamente seus impactos mais perversos na classes populares, formadas por aqueles que o sistema econômico vigente veda o direito a escolha pelo isolamento social. Há ali duas batalhas simultâneas e antagônicas: uma contra o coronavírus, outra pelo prato de comida.
O primeiro caso de morte por COVID-19 no Estado do Rio de Janeiro é bastante elucidativo. Uma negra, secretária doméstica e idosa, que se contaminou após contato com a patroa, residente do Leblon e que retornou da Itália com o vírus. Assim, a pandemia do Covid-19 escancara problemas presentes no Brasil desde o século XVI, dominantes em Alagoas a partir do genocídio do colonizador contra os caetés e tapuias; já transpostos por navios negreiros junto ao sequestro e escravidão do povo africano subsaariano: a injustiça social.
E que outra razão explicaria dramas do cotidiano? Pegamos como outro exemplo o transporte coletivo, serviço essencial, na garantia da mobilidade da força de trabalho. Em 16 de abril de 2020, o canal de tv de maior audiência de Alagoas mostrou imagens que já circulavam na internet, de um coletivo lotado em plena quarentena. As cenas foram o bastante para chocar, princialmente, quem não pega ônibus, ou tão pouco, parou para observá-los no trânsito cada dia mais movimentando da cidade e seus invisíveis urbanos.
Durante a quarentena, a trabalho, embarcamos em algumas linhas do transporte público da cidade. Especialmente em duas: 711 Cidade Universitária / Ponta Verde, itinerário que passa por 25 dos 50 bairros de Maceió; ou na 104 Benedito Bentes / Trapiche, que atende os bairros maceioenses mais populosos (Benedito Bentes e Jacintinho), além da região lagunar (um dos principais epicentros de Convid-19 no município).
Com base nessas experiências, não seria um exagero dizer que todo “busão” tem um pouco de Navio Negreiro. Do motorista ao último passageiro, encontramos, predominantemente, os filhos dos caetés e dos tapuias; os descendentes bantus e nigero-congoleses. Tanto assim, que tal cenário é captado pela consciência de classe. “Navio Negreiro” é como os trabalhadores rodoviários chamam o coletivo que pela madrugada passa pelas principais vias da cidade, transportando os trabalhadores do setor até a garagem.
Esse exemplo cotidiano reproduz uma adaptação trágica do ditado popular. Agora, poderíamos dizer assim: Se ficar a fome aperta, se sair o Covid-19 pega. E é por isso, que para a classe popular na guerra contra a pandemia da Covid-19, ante o enfrentamento ao Corona vírus em si, há a batalha pra “pescar o peixe” e alimentar a si e seus entes. O patronato sabe disso, e sabe também do exército de reserva a seu dispor. O trabalhador se vê numa “sinuca de bico”.
Quando a necessidade do trabalho fica submetida à ação exploradora do poder econômico e reduzida à dura sobrevivência do trabalhador,  encontramos  o sentido indigno de trabalho, a miséria do ser reificado e fracasso da humanidade. Mais do que nunca, o trabalho é tripalium.
Outro caso cotidiano que reforça essa tese, aconteceu  ainda em abril. Saindo de uma visita em um dos trabalhos, embarquei na linha 104, ainda no Trapiche da Barra, próximo ao tradicional bar do Saudoso Amaurir. Estava exausto. Estando o ônibus  ali vazio, sentei-me em uma cadeira junto ao corredor, com ferro apoiador atrás. É minha poltrona predileta, porque sou alto e barrigudo, e nesses bancos de ônibus apertados que queimam os joelhos, ao menos o ferro permite encostar a cabeça e tirar um cochilo. A viagem era longa, Antares, no outro lado da Cidade.
Nem deu tempo! Pouco depois, no ponto do HGE (Hospital Geral do Estado), sobe um passageiro e senta ao meu lado. Se dirigia ao trabalho, que fica na Serraria. Pediu licença pra ir para a poltrona da janela, sem perder a oportunidade de pisar no meu pé. Não teve disposição para pedir desculpas, mas, afoito, como se estivesse prestes a estourar, ainda na Siqueira Campos, ele começa a desabafar. Assim que ele abriu a boca, pensei: Agora deu!
- Trabalho numa funilaria, mas  não tenho carro. O patrão anda reclamando que com o Covid (-19) os EPI’s (Equipamentos de Proteção individual) andam ficando caros. A máscara dura 2 horas, agora a gente tem que usar por uma semana inteira; o álcool gel, é gel de cabelo misturado a álcool 70%; se ficar doente, não podemos ir ao hospital, patrão tem medo de levarmos esse tal bicho corona pra dentro da empresa. Se reclamar é rua, “a fila pra entrar é grande, dobra a esquina”, ele diz.
 Tento parar o homem, olho pro lado, respondo com uma monossílaba, penso em tirar um livro da bolsa. Mas o seu desabafo e persistência na conversa me cativam. Além do que, interromper um semelhante “peão” que fala de seu patrão, é  um verdadeiro sacrilégio contra a classe, entre trabalhadores.
E o homem prossegue. Diz que trabalha com verdadeiras “máquinas”, que já pegou Carango e Mercedes dos ricos do Aldebaran e do San Nicolas; que prefere estes, porque recebe melhor gorjeta, mas o patrão não pode ver, ser ver, “quer sociedade”. Pega também carros de aluguel do aeroporto, e destes é que tem medo: - Sabe-se lá quem andou nesses carros?
Aproveito o ensejo, e já no Jacintinho pegunto a ele como é a convivência dentro da empresa durante o isolamento social?
- Isolamento? Lá só existe um. Antes havia uma sala de espera para os clientes com TV, sofá, café, bolacha. Agora tá fechada. Os clientes, quando esperam, ficam com a gente mesmo. O patrão não desce mais, fica trancado no escritório, no primeiro andar. Fala com a gente  e clientes pelo telefone, mas diz que é pra gente não ter medo, que é coisa passageira, que nem adianta correr, porque essa “gripe” todo mundo uma hora vai pegar mesmo.
E pro final da conversa eu estou encucado, e pegunto a ele por que não tenta algo mais perto, sair do Trapiche da Barra para a Serraria, com tanta funilaria na parte baixa? Compensa? 
- Não moro no Trapiche não. Moro no Ouro Preto. Vim do Trapiche porque minha patroa tá internada. Suspeita de Covid (-19).
Após isso o homem se levantou. Esboçou apertar minha mão, mas eu ofereci o cotovelo (saudação alternativa nestes tempos).  Lhe desejei boa sorte. Ele me deu um “Fique com Deus”. Respondi com um desejo de “saúde para você e sua família, melhoras para sua esposa”. Ele, mais sem jeito do que eu, deu o esperado amém. Tentei adivinhar em qual funilaria aquele pobre trabalhava, havia ali perto daquele ponto duas ou três, subtraídas aquelas que poderiam ser confundidas com mecânicas. Pensei em dá uma passadinha lá no dia seguinte, saber de sua esposa. Nunca fui.
Depois dali, até o caminho de casa, um silêncio interno tomou conta de mim. Ora por ter contato tão próximo com alguém que poderia ter tido contato com outro alguém com Covid-19. Depois, conclui que isso era besteira minha. Tendo que trabalhar fora, o contato é inevitável, pegar ônibus, andar na rua, falar com pessoas… inevitavelmente teria contato.
Após isso, me senti mal, pequeno, egoísta. Me veio a reflexão sobre a situação daquele pobre diabo. A mulher no hospital e ele trabalhando naquele cenário, certamente não é caso a parte, mas um padrão entre sua classe. É Nesta direção, que concluímos: mesmo com a iminente pandemia e isolamento social, em geral, quem precisa sair de casa para vender sua força de trabalho, não teve diminuída a pressão e responsabilidade no emprego. Oposto a isso, repete-se o mantra do sistema: a corda arrebenta sempre no lado mais frágil. Mas, sobretudo, isso nos revela que não estamos lá tão distantes da servidão.
E dentro de uma perspectiva capitalista, não poderia ser diferente. São conhecidas as múltiplas facetas do sistema de manipulação para a manutenção da exploração do homem pelo homem. O aparentemente singelo e empreendedor discurso de que “a economia não pode parar!”, esconde na verdade uma imposição: Cifrões valem mais do que a vida das pessoas. Mas sem pessoas há economia?
 E, assim, os pescadores de ilusão seguem na luta pela sobrevivência, enfrentando seus desafios: achar coragem pra entrar no oceano de aflições que se tornou a rua, pegar o coletivo cheio até o trabalho, se concentrar na labuta em meio a tempestade de notícias, suportar a birra do patrão.

Trabalho Remoto

E mesmo para o celetista ou autônomo que tem a alternativa do trabalho remoto, nada é fácil. Os professores, por exemplo, vivem hoje um enredo digno de uma obra do dramaturgo Nelson Rodrigues. Para muitos, a sala de casa virou um perfeito palco da "comédia da vida privada"; a tal inviabilidade do lar, consagrada no Art. 5º da Constituição Federal de 1988, é despojado em transmissões caseiras para um público exigente, acostumado às produções Netflix e a qualidade 4k.
A tragédia tem seu clímax quando o educador, que se reinventa continuadamente num universo didático intangível e improvisado, recebe da plataforma digital multinacional a mensagem de que o limite de 30 minutos de reunião da versão gratuita expirou, mas ele pode aderir a uma versão intermediaria, com valor mínimo equivalente a várias dezenas de horas/aula($).
Assim, outra grande injustiça social é escancarada no Brasil. Enquanto a média salarial do último clube campeão nacional de futebol, o Flamengo, é de, aproximadamente, R$ 466.666,60. Considerando o valor de R$12,00 como média da hora aula em Maceió, um professor precisa de 9 dias (manhãs) de aula para ganhar aquilo que um jogador de futebol, do último clube campeão brasileiro, ganha em 1 minuto de jogo (R$ 648,15).
Isso quer dizer que um professor precisaria de aproximadamente 39 anos, nas condições atuais, para ganhar o salário de um jogador de futebol, com uma diferença: Jogador de futebol ganha por direito de imagem, professor, mesmo com a invasão a privacidade, não.
E o que dizer de nossos jovens? Uma geração que para se atender a curta licença maternidade, corre um significativo risco de ser parida no local de trabalho da progenitora. Como se não fosse o bastante, é desmamada cedo, porque lá se passaram os 4 meses da licença de sua mãe. O que vai de encontro à recomendação da ONU/OMS, a qual recomenda que os bebês sejam alimentados exclusivamente pelo leite materno até os 6 meses.
E logo a precocidade escolta essa geração, ano a ano. Na falta de tempo e atenção dos pais, por vezes, aprende-se a depositar sua aflição em um celular smartphone, e ali encontra o abrigo ideal para despertar sua juvenil ansiedade.
Com a pandemia, e o inevitável isolamento social, nossos jovens se tornaram membros de um alistamento obrigatório, soldados de uma produção escolar fordista, e sua regra de ouro: tarefa dada é tarefa cumprida. Nesse contexto artificial, o intangível substitui o tangível, o psicólogo é trocado pela rede social e, como exemplo, uma adolescente ali desabafa: 15 atividades por semana, 60 tarefas por mês, 120 em um bimestre. Menos do que o assustador número de mortes por Covid-19 em Alagoas, mas, o bastante para comprometer nossa saúde mental.
É importante destacar aqui, o cenário que o nostalgico geógrafo brasileiro Milton Santos chamou de circuito inferior. Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE – 2017), a internet alcança 79,9% dos domicílios brasileiros; havendo uma considerável diferença regional, desfavorável ao Nordeste.
Se associarmos esse dado a outro da mesma pesquisa, a presença do analfabetismo, a discrepância é ainda mais alarmante, há um verdadeiro abismo entre o RJ com 2,5% (melhor colocado); e AL com 18,2% (pior colocado). Segundo matéria da BBC Brasil (de 12 de novembro de 2018), 3 a cada 10 brasileiros podem ser considerados analfabetos funcionais.
Pleonástico dizer aqui dos riscos que esses dados representam para Alagoas e o Brasil, não só sobre o aspecto da educação, como também da própria saúde pública: sem o básico que é ler, escrever e interpretar por uma gama tão significativa da população, até onde vai a eficácia das políticas públicas de prevenção/mitigação da pandemia COVID-19?

Impactos  da Pandemia: da perda momentânea a permanente

Sabe-se que dos muitos estudos que vem tentando investigar os efeitos psicológicos do isolamento social sobre as pessoas (e até outros animais), são salientados os impactos negativos como a excessiva ansiedade, estresse pós-tramático, irritabilidade, entre outros.
Mas, ainda com tudo isso, o pior dos traumas da pandemia é certamente a morte. Sabemos que o luto é uma questão muito relativa. Para algumas pessoas o luto é breve, dias; mas não é raro o caso de pessoas que levam o luto por uma prolongada angústia de anos e/ou até a morte.
Um caso que sintetiza isso é aquele que ocorreu em 02 de julho deste ano, e foi publicado no G1 notícias. Em Manaus, o neto resgata o cadáver de sua avó, falecida há 2 anos, do cemitério. Abraçado ao corpo, ele dança pela rua, a distância de 1Km do cemitério. Ao avistar a cena fúnebre, populares vão até o local, e com dificuldade imobilizam o rapaz de 32 anos, amarrando-o em um poste.
A cena ganha conotação ainda mais dramática, quando, transtornado e diante do corpo da avó no chão, ele dizia que queria doar os seus órgãos para fazer na avó um transplante e trazê-la de volta a vida, pois sentia muita saudade.
Por hipótese, acredita-se que o crescimento geométrico no número de óbitos gerado pela pandemia, somado a quebra do rito de despedida dos entes, proporcionará ainda mais pessoas com experiências traumáticas.
Soma-se a isso, o gigante contingente que terá que passar pela transição para o mundo pós-pandemia. Filósofos e cientistas comumente afirmam que nada será como antes ou ainda, que o “normal” do mundo pré pandemia acabou,  morreu. Assim como outras pandemias históricas que mudaram o curso da humanidade, essa terá um legado, em diversos ramos.
Retomando Cazuza e suas imortais frases, “o tempo não para”. Tudo muda,  às vezes pra pior. O Sábio Domingos morreu; a mangueira foi cortada e o banco em formato de lua crescente, evanesceu. O que era público, agora é grilagem; o primo ingênuo virou capitalista, uma versão piorada do Paulo Honório; a Santa Amélia, agora é a nova São Bernardo, Bebedouro afunda em profunda angústia. E ainda assim, não foi tempo perdido, de tudo isso algum aprendizado se pode tirar.
E é por isso que a pandemia também ensina, mesmo que da pior maneira, ao custo da reclusão e mortes. Na urbanização, se discute a iminência necessidade da Revolução Sanitária; na Saúde Pública, políticas que mitiguem os efeitos de uma pandemia dessa proporção; na educação, o uso mais intenso de tecnologias da informação veio pra ficar. Diante da expectativa da descoberta da vacina contra o coronavirus/covid-19 e medicações de combate ao problema, a ciência (por alguns renegada) sai fortalecida, e se apresenta como o único Porto Seguro para sair da crise.
É inegável que a pandemia covid-19 trouxe impactos em todos os setores da comunidade global e da sociedade. Entretanto, é importante compreender, como discorrido aqui, que a pandemia não criou diferenças regionais e as discrepâncias sociais, mas, intensificou-as. A cidade desde muito é segregada, um arquipélago de ilhas por vezes incomunicáveis, e onde os problemas, sejam eles de qualquer natureza, afetam principalmente as classes mais populares.
Ainda em 1935, o poeta baiano Jorge de Amado lançou o livro Jubiabá, que retratava o cotidiano das classes populares soteropolitanas. Dentre os vários relatos, o caso dos corajosos pescadores, que ao se aventurar na imensidão do oceano, nem sempre conseguem achar o caminho de volta. E é neste drama, entre a perda momentânea e a perda permanente, que entra em cena suas bravas companheiras, munidas de lanternas para guiar a embarcação de seu companheiros até o cais do porto, a “lanterna dos afogados”, brilhantemente musicada pelos Paralamas do Sucesso.
Em meio a pandemia da COVID-19 e o isolamento social, qual é o cais do porto da humanidade? Quem é a nossa lanterna dos afogados?

O blog pode não concordar no todo ou em parte, com a matéria publicada