sexta-feira, 5 de junho de 2020

Cássio Júnio Ferreira da Silva. POVOS INDÍGENAS E O CONTEXTO DE PANDEMIA. [Memória da pandemia nas Alagoas]



POVOS INDÍGENAS E O CONTEXTO DE PANDEMIA

Cássio Júnio Ferreira da Silva
Xucuru-Kariri e mestrando em antropologia

Colonialismo, Colonialidade e Contaminação

Antes de falarmos sobre os povos indígenas no contexto da pandemia (coronavírus), faz-se necessário pontuar que os povos indígenas lidam com o perigo invisível (contaminação por vírus e outros agentes) desde a invasão do Brasil por europeus. Um dos vírus com maior letalidade entre a população indígena foi a varíola, introduzida no território brasileiro pelos colonizadores.
Na década de 1660, ocorreu uma grande epidemia de ‘bexigas’ (nome popular da varíola) na Amazônia colonial, sobre esse contexto os historiadores Rafael Chambouleyron, Benedito Costa Barbosa, Fernanda Aires Bombardi e Claudia Rocha de Sousa ao dialogarem com escritos do período afirmam que “o ouvidor Maurício de Heriarte relatava igualmente a desolação causada pela doença”. Segundo ele, na ilha de São Luís havia inicialmente 18 “aldeias grandes de índios” de diversas nações; com as bexigas, “se consumiram e ficaram três” (2011, p. 989).
A forma como o vírus da varíola infectou a matou a população indígena impressiona pois em uma única localidade dizimou 15 aldeias, se pensarmos na extensão do território brasileiro podemos projetar um terrível cenário de destruição. Mas a contaminação por esse vírus não ocorreu apenas no Brasil colonial, e muitas vezes foi realizada de forma proposital.
No livro Brasil: uma biografia, as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling ao analisarem o conjunto dos crimes cometidos pela ditadura civil-militar (1964-1985) chegaram à conclusão que “nada se compara aos crimes cometidos pela ditadura contra as populações indígenas” (2015, p. 463). As comprovações desses crimes foram documentadas em um relatório produzido pelo procurador Jader Figueiredo, responsável por coordenar uma comissão de inquérito administrativo responsável por apurar denúncias que incidiam contra o Serviço de Proteção ao Índio – SPI (órgão que antecedeu a Fundação Nacional do Índio – FUNAI).
Jader compilou e classificou os crimes cometidos por invasores de terras indígenas com a cumplicidade do órgão indigenista oficial, de modo que apresenta os seguintes crimes, “assassinatos, prostituição de índias, sevícias, trabalho escravo, apropriação e desvio de recursos do patrimônio indígena” (2015, p. 463), uma das maneiras de se cometer esses assassinatos era através da inoculação do vírus da varíola em povos indígenas em situação de isolamento, mostrando que armas biológicas foram utilizadas contra populações indígenas em períodos recentes da história do Brasil.

O Coronavírus nas aldeias e o descortinar de velhas questões

Desde que os primeiros casos da pandemia de Coronavírus (COVID-19) foram registrados no Brasil, a maior parte das autoridades políticas, através dos parâmetros estabelecidos pelas autoridades medicas e sanitárias, passaram a defender o afastamento social como principal medida preventiva para contingenciar a propagação do vírus. Diversos setores da sociedade civil voltaram seus olhares com preocupação em relação aos povos e comunidades indígenas, de modo a questionar quais medidas poderiam ser tomadas para evitar que a pandemia chegasse a esses territórios.
Como resposta a essa problemática a FUNAI editou a portaria N.º 419 de 17 de março de 2020 que estabelece as medidas de prevenção para se evitar a propagação da pandemia, entre outras questões a portaria proíbe a entrada de não-índios nas Terras Indígenas. Mas não é suficiente estabelecer a proibição legal, se faz necessário garantir os mecanismos de fiscalização para garantir a efetividade dessa medida. É bem verdade que há anos a FUNAI não consegue realizar a proteção das Terras Indígenas devido um agravado estágio de sucateamento do órgão.
No dia 7 de abril de 2020 foi registrado o primeiro caso de Coronavírus entre os Yanomami, tendo um adolescente de 15 anos testado positivo para a COVID-19, sendo a contaminação ocasionada justamente pela inoperância do Estado Brasileiro em realizar a proteção dos territórios indígenas. Segundo o site Survival Brasil, em matéria veiculada em julho de 2019, ao longo dos anos cerca de 10 mil garimpeiros já haviam invadido o território Yanomami, levando doenças e espalhando mercúrio pelos rios.
Mesmo no contexto de pandemia essas invasões não pararam, menos de dois meses após o aparecimento do primeiro caso, o povo Yanomami tem 44 infectados e dois óbitos em decorrência do Coronavírus.
Esse contexto de dificuldade em se efetivar a proteção territorial é recorrente em diversas terras indígenas em todas as regiões do país. Em Alagoas, a pandemia adentrou aos territórios dos povos Kariri-Xokó, Xukuru-Kariri, Karapotó-Plak-ô e Jeripankó, entre esses povos uma das maiores problemáticas é a dificuldade de se garantir a proteção territorial, fator que impossibilita o isolamento voluntario dos grupos no contexto de pandemia.
Na Terra Indígena Xukuru-Kariri localizada em Palmeira dos Índios no agreste alagoano, de onde escrevo esse pequeno texto, existem dois casos confirmados de indígenas contaminados com COVID-19. Esse caso muito provavelmente é subnotificado, pois a SESAI não conta com testes suficientes para realizar uma testagem em massa, procedimento necessário para se ter uma visão detalhada de como a contaminação avança entre os povos.
Outro fator que faz com que os números da SESAI sejam subnotificados é que entram nesses dados oficiais somente indígenas que estão residindo nas terras indígenas, não levando em consideração para as estatísticas os indígenas em contexto urbano, a grande problemática existente nessa orientação do estado brasileiro é que, segundo dados do censo de 2010 do IBGE, aproximadamente um terço da população indígena está em contexto urbano.

Referências

BARROS, Ciro. Operando com 10% do orçamento, Funai abandona postos e coordenações em áreas indígenas. IN: Agência Pública. Disponível em: https://apublica.org/2019/03/operando-com-10-do-orcamento-funai-abandona-postos-e-coordenacoes-em-areas-indigenas/.
CHAMBOULEYRON, Rafael et al. ‘Formidável contágio’: epidemias, trabalho e recrutamento na Amazônia colonial (1660-1750). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n.4, out-dez. 2011, p.987-1004.
FUNAI. Portaria Nº 419/PRES, de 17 de março de 2020. Boletim de Serviço da FUNAI. Brasília, 2020.
PALMEIRA DOS ÍNDIOS. Boletim Epidemiológico de 30 de maio de 2020. Palmeira dos Índios, 2020.
SESAI/MS. Boletim Epidemiológico do polo base Xukuru-Kariri de 03 de junho de 2020. Palmeira dos Índios, 2020.
SESAI/MS. Boletim Epidemiológico de 29 de maio de 2020. Brasília, 2020.
SESAI/MS. Boletim Epidemiológico COVID-19 DSEI AL/SE de 02 de junho de 2020. Maceió, 2020.
SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
SURVIVAL BRASIL. Milhares de garimpeiros invadem o território Yanomami. Disponível em: https://www.survivalbrasil.org/ultimas-noticias/12162.

Os depoimentos indígenas estão sendo coordenados pelo Professor Dr. Amaro Hélio Leite.