quinta-feira, 14 de maio de 2020

Renildo Ribeiro. Memórias em tempos de pandemia. Memória da pandemia nas Alagoas



Memórias em tempos de pandemia

Renildo Ribeiro
Professor Dr., Diretor da Eduneal, UNEAL

“Tenho a impressão de que o senhor deixou as pernas debaixo de um automóvel, seu Ribeiro. Por que não andou mais depressa? É o diabo” (Fala de Paulo Honório no romance S. Bernardo de Graciliano Ramos).

A citação acima traduz bem o momento atual, parece que um automóvel passou sobre nossas pernas e o mais grave de tudo é que não percebemos quando, sabemos apenas que hoje estamos inaptos a seguir, limitados e perdidos no meio do caos. A incidência da Covid-19 vem atestar as nossas paralisias, fragilidades e dificuldades de agir em momentos de crise.
Fomos pegos em hora imprópria e com as calças aos joelhos como diriam alguns mais velhos. Seguros da nossa superioridade em um mundo moderno do século XXI, mesmo com as fragilidades visíveis de nosso país, estávamos longe de imaginar cenário tão distópico como o que vivemos. Fazíamos planos e acreditávamos em um futuro promissor, em possíveis viagens e eventos. Estávamos relativamente confortáveis, em nosso mundo. Estava tudo bem? Não! Tínhamos fome, muito desemprego, mas mesmo assim nada próximo ao que vislumbramos hoje.
O cenário é desolador. Em pouco tempo percebemos o quanto estamos impotentes frente ao mundo que se apresenta. A realidade foi totalmente reapresentada, reconfigurada e toda e qualquer perspectiva ou projeto de futuro cai no vazio da incerteza e no vácuo absoluto. Todo aparato tecnológico e científico das grandes potências foi reduzido a nada!
Tentamos nos adaptar. Sou professor da rede Municipal de Maceió (SEMED) e da Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL) e não tem sido fácil.
A tentativa de desenvolver atividades remotas é um martírio que tira o sono de qualquer cidadão que busque a equidade, o respeito ao outro e a qualidade na esfera educacional pública. Definitivamente, não podemos fingir que oferecemos educação, aula e conhecimento através de atividades virtuais quando o público receptor que será atendido é bastante restrito. A desigualdade social, a carência tecnológica e econômica de nosso povo é gritante. Os alunos do fundamental não possuem sequer um celular para interagir remotamente, mas a Semed recomenda atividades remotas e finge que atende aos alunos através do Instagram. Na universidade, leciono em Arapiraca, nossos alunos chegam a tirar foto de textos por não ter dinheiro para Xerox, mais de 40% não possuem computador e digitam trabalhos no próprio celular. A função da escola pública, seja ela Educação Básica ou Ensino Superior, é oferecer não apenas a base acadêmica/científica, mas também promover a igualdade de oportunidade entre sua clientela e orquestrar a convivência e a interação entre as diversidades econômicas e culturais. Essa convivência é fundamental para consolidar o respeito à diversidade de nosso povo.
Obviamente, na conjuntura atual, o aconselhado pelos órgão competentes é o distanciamento social. No entanto, não podemos fingir e insistir com um ensino remoto quando grande parte da clientela não consegue ter acesso aos meios tecnológicos básicos.
Assim, a impressão que tenho, retomando a citação inicial, é que realmente tivemos as pernas estraçalhadas no passado, não nos demos conta e agora estamos limitados no andar.
As angústias são muitas, desde as frustrações diante da realidade educacional que nos encontramos até as incertezas que nos afligem, sejam elas econômicas, políticas, sociais e por aí seguem.
Confinado em casa com esposa e duas crianças: Lara, de 5 anos; e Pedro, de 3 anos, a administração do tempo e a realização das tarefas não tem sido fácil. A produção intelectual é quase um milagre. Mesmo com um espaço razoável que dispomos, as crianças exigem atenção o tempo inteiro e muitas noites têm sido em claro. Acompanho a insônia que tem vindo frequentemente me visitar.
Mesmo assim, o trabalho é intenso: organizei um livro com uma amiga para concorrermos a um edital e, na última semana, concluí um capítulo para outro livro, solicitado por um colega. Estou construindo um projeto de PIBIC para trabalhar dois romances contemporâneos: O peso do pássaro morto, de Aline Bei e O verão tardio, de Luís Ruffato. Corrijo e oriento TCC e relatórios de pesquisas em conclusão. As atividades na Editora da Universidade Estadual de Alagoas – EDUNEAL, onde desempenho a função de Chefe de Núcleo Editorial, também são relevantes e intensas.
Quando as ideias surgem e conseguimos realizar alguma ação é muito prazeroso, mas na maior parte do tempo não tem sido assim.
Sinto-me como que parado no tempo esperando o que não chega nunca. Intensos e constantes questionamentos sobre futuro rodeiam minha mente como mosquitos ao redor da lâmpada. Questionamos o ano ou semestre letivo e outras coisas que, agora, não têm mais importância.
Na verdade, nossa tabela de valores foi radicalmente alterada. Sinto-me como o eu lírico do poema de Drummond: “No meio do caminho tinha uma pedra/ Tinha uma pedra no meio do caminho” e jamais esqueceremos estes acontecimentos.
O fundamental é não perdermos as esperanças, e como nos diz o poeta:

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. (Mãos dadas-Carlos Drummond de Andrade

Diante disso tudo, só nos resta a literatura

Consolo na praia

Vamos, não chores…
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

 

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-se – de vez – nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.

Carlos Drummond de Andrade In: A rosa do povo, 1945

Projeto Memória da Pandemia nas Alagoas

Coordenação
Luiz Sávio de Almeida e José Carlos Silva de Lima
O blog pode concordar ou não, em parte e no todo, com a matéria publicada
Nosso objetivo é deixar um painel diversificado sobre a pandemia nas Alagoas