quarta-feira, 6 de maio de 2020

Luiz Sávio de Almeida. O virus enquanto espero o tempo passar (IV): em torno do virus, palavra e guerrilha



 Luiz Sávio de Almeida. O virus enquanto espero o tempo passar  (IV): em torno do virus,  palavra e guerrilha
Luiz Sávio de Almeida

É de se perguntar sobre o que o virus fez com o vocábulo, o que ele tem a ver com quarenta! Não sei dizer, quantos dias... Faz tempo que o mundo – que alguns chamam de pós-moderno – sente a necessidade dos muros d’antanho, de fortalezas  abrigando partes de povos, por detrás de imensos paredões de pedra.  Tempos absolutamente diferentes dos atuais e é interessante ver a simplicidade com que o Diccionario de Lima e Barcelar de 1783 (1783, 187) trata a epidemia como  “Doença de muito povo”. Fica muito bem posto, que epidemia sempre exige uma coletividade, a que os autores estão chamando de povo e que pode ser visto como um ajuntamento de gente.  Naqueles idos do século XVIII, Lima e Barcelar consideram o indistinto do povo e a este indistinto podemos acercar a quadraginta[UdW1] [UdW2] .

Já o Bluteau (1789), vai dizer que epidemia se trata do “andaço de doença”.  E este termo andanço será ligado também, em seu dicionário a contágio e corrupção dos ares. É uma bela palavra e inclusive traz movimento, jeito de se fazer. Fica mais claro, quando ele fala em um verbo que, atualmente, de modo raro a gente conjuga: desinfeccionar. Fomos à procura, em nosso dia a dia de fala, da ajuda de um outro verbo para associar ao substantivo: acabar com a infecção.  Parece-me que somos mais apegados ao substantivo, embora o verbo nos forneça a intensidade de uma ação: desinfecionar[UdW3] . 

A minha casa, a minha rua, o meu tempo devem, se desinfecionar; sei que respirar sem virus é impossível e, na verdade, nada tenho contra ele;  tenho contra a quem facilitou a sua vida. Ele nasceu perfeito, pois até agora, pelo que sei, ainda não se conseguiu apontar um seu calcanhar de Aquiles. Assim, ao que parece do ponto de vista da evolução, para onde mais ele iria a não ser para mutações e nelas atuam a velha noção de seleção natural. Pelo que sei, já sofreu quatro mutações e os nossos vieram dos lados europeus da Itália, depois, não se pode precisar o exato momento e que passou à transmissão comunitária e foi  do Oiapoque ao Chuí, e  embora sendo fisicamente o mesmo virus, passou  a ser  uma pluralidade cultural no país, do mesmo modo que seria diferente ser na periferia de New York e ser no cinturão do milho ou mais especificamente, em Michigan, Estados Unidos.

 Uma intention recta está presente em nossa guerra e é uma guerra mais do que justa e de tão densa e forte que nos mudará de diversas formas, especialmente nos levando a pensar em um sistema de saúde diferente, tomado de surpresa  não pelo mistério do virus, mas pelo combate universal, numa marcha que jamais foi tão  veloz, a se pensar que há pouco tempo estava na China e de repente estava na Europa, Brasil e Alagoas, numa velocidade que a economia criou para si e terminou para ele. Vamos nos lembrar do Ebola, que terminou recolhido e pensar neste que terminou em todo mundo. Se eu assumisse o que existe por detrás da expressão, ousaria dizer que estamos diante do primeiro virus acentuadamente pos-moderno.

O resultado foi trágico: no dia de hoje, no Brasil, os estados estão à beira da exaustão e se prevê para este mês entrante a ocupação a bem dizer total dos leitos disponíveis. Não é apenas a quantidade que afeta  o sistema, mas os dias de ocupação que ficam em torno de 20, conforme matéria publicada na UOL e de autoria de Canzian (2020). Peço desculpas a todos os entendidos, mas não confio muito em resultados alarmantes; sei que são possíveis, mas sempre acho que haverá alguma forma de combate. A mesma matéria de Canzian (Idem) nos fala de estudo em que se projeta, mantida a tendência, que teremos 40.000 infecções diárias no Brasil a partir de julho, segundo pesquisa da Federal de Minas Gerais. Sempre tomo estes dados como alerta, mas espero que se contorne este caminho[UdW4] .
Enquanto isto, leio no Diário do Nordeste , que a polícia prendeu um pai de santo, em cuja casa se fazia toque para expulsar o virus do corpo de um de seus filhos. Seria uma mutação dos tempos de inquisição? Fiquei pensando: avalie se a modo pega... O  virus seria uma entidade  descida para fazer o mal, perturbar e tinha de  ser exorcizada. Era um toque de exorcismo e de fato quando rezamos, oramos ou praticamos atos semelhantes, estamos a exorcizar Coronas e mais Coronas, como se estivessem abertas as portas do inferno[UdW5] [UdW6] .

 Não me parece possível, ainda, de se ter uma ideia  – pelas estatísticas publicadas pela Secretaria de Saúde do Estado de Alagoas –, sobre como vem se processando a distribuição espacial do virus em Alagoas.  Sabemos de registros para determinados municípios, mas não há, ainda, a possibilidade de se traçar um perfil do movimento o que, talvez, deva-se ao fato de que ele se encontra marcadamente situado em Maceió, o grande centro urbano do Estado, não tendo ocorrido um marcante aparecimento nas áreas do interior, mas ela começa a surgir nestes fins de abril, como iremos ver.
É preciso deixar claro, que esta  situação está sendo argumentada, por nós, no dia 24/04/2020 e com base no Boletim nº 46 do Centro de Informações Estratégicas e Resposta em Vigilância em Saúde CIEVS/AL, da Secretaria mencionada no início deste parágrafo. Trata-se de material de bom nível e consequente por parte dos profissionais envolvidos na sistematização dos dados. Claro que deve estar pesando a chamada subnotificação, mas isto não é somente em Alagoas,  mas no Brasil como um todo e decorre, especialmente, da velocidade de diagnóstico que não existe, segundo leio, e  que seja confiável em curto espaço de tempo. Existem estimativas de taxas e subnotificação, mas são baseadas em comportamento do virus em outros países.  Preciso sentir como se fará a distribuição espacial do virus, que não pode ser confundida com área por ele ocupada.

O  que nós estamos chamando de processo de distribuição espacial, pressupõe, simplesmente,  movimento, deslocamentos e isto redunda em algo  radicalmente diferente de uma simples plotagem, de uma verificação pausada em um sistema cartesiano. Claro que plotar é uma informação essencial, mas jamais suficiente, especialmente quando entendermos o espaço como sendo o que é gerado no   assenhoramento da natureza. Simples,  jamais poderia ser confundido com desnecessário: sem dúvida, é preciso plotar, mas é fundamental estudar a provável existência de caminhos e rotas e, nisto, discutir se estamos ou não diante de possível sistematização dessas rotas, onde se pode ter uma pergunta capital a ferir os modi operandi: de onde o virus sai e para onde o virus vai, devendo ser notado que ele não sai e se vai sem poder ficar.  É de se notar, portanto,  que ligamos o virus à ideia de espaço e, assim, estamos afirmando a possibilidade de lidar com a sua historicidade e, na verdade, consideramos que a única possibilidade dele existir, para nós, é estando neste complexo de situações onde tem vida humana e, portanto, construção, historicidade. Se desejarmos ampliar a discussão, podemos afirmar que toda a nossa análise histórica, necessariamente, vai ter de entendê-lo dentro desta construção-espaço e, mesmo quando o tratamos como unidade biológica, ela somente fará sentido nas velhas condições de tempo e lugar, e, desta forma, exigindo que a categoria de análise fique clara. Neste rumo da argumentação, poderia ser posta em evidência que o virus é a desigualdade social, no que Alagoas é elucidativa.

A guerrilha e a virose

Numa sexta-feira, 13 de Março, era dito que mantínhamos dez suspeitos e todos eles localizados em Maceió; deu-se a confirmação, em pessoa vinda da Itália e aí começa, pelos menos na narrativa oficial, o périplo do virus nas Alagoas. Jamais alguém poderá determinar ter sido aquele virus, o pai dos virus alagoanos, mas sem dúvida deveria ser  descendente dos que germinaram na Itália e começa, no seio de nossa pobreza, a história de uma doença que veio de fora e rapidamente se infiltrou em áreas cujas fronteiras estavam em aberto e não poderia ser ao contrário.  Vamos considerar, para efeito destas notas que a partir daí,  ele entra em nosso espaço e assume uma determinada velocidade de operação, o que vou considerar como sendo uma velocidade de guerrilha contra uma defesa fadada ao convencional dos enfrentamentos, sem a capacidade alternativa que o virus tem de estar em qualquer ponto do território e nas circunstâncias que cabem-no dentro do espaço.

Nesta guerra que estamos vivendo, podemos ver o virus como operando um conjunto de combatentes  magistralmente montado  e conduzindo, inclusive por ser  poderosa máquina, cada um com fantástico poder letal. Nós,  ao contrário,  temos de fazer o enfrentamento com uma parafernália instrumental caríssima e sem capacidade de alta movimentação: estamos em rapidamente esgotáveis pontos fixos,  nunca em ataque e parece estranho: sempre em recuo. E isto é um acentuado prejuízo na luta pois o que nos resta como grande combate é o que chamam confusamente de distanciamento social. O meliante anda sem informar para onde vai: sem dúvida, está em Maceió e vai sair e outros sempre estarão procurando portas para entrar e meios de ficar.

Trata-se de um guerrilheiro privilegiado, pois é invisível; é quase como os vietcongs de Ho Chi Min que viviam debaixo da terra.  E o facinosro repete a mesma tática onde quer que esteja, apesar de ser diferente como acontece em cada lugar: quer seja em Maceió, quer seja na Capela, o procedimento é o mesmo e o alvo é certeiro: boca, nariz, olhos, tanto fazendo se é rico ou pobre, velho ou moço, do Penedo ou de Piranhas. É como os dribles do Garrincha que institucionalizou o João. O infeliz precisa apenas ter acesso e se não tem de imediato, pode demorar-se à espera, não se sabe quanto tempo, não se sabe onde pousou para se ir morrendo ou ser morto na atividade de drogas que têm de terminar em cida, como terminam inseticida, formicida, germicida: coronicida.

 [UdW2]LIMA, Bernardo de. Dicionário da língua portuguesa em que se acharão  dobradas do que traz Bluteau, e todos os mais dicionários juntos. Lisboa: Oficina de José de Aquino Bulhões, 1873.
 [UdW3]BLUTEAU, Rafael.  Dicionário da língua portuguesa composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e acrescentado por Antônio de Moraes Silva, natural do Rio de Janeiro. Lisboa: Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1789.

 [UdW4]CANZIAN, Fernando. Leitos de UTI do SUS devem acabar em maio na maioria dos estados UOUL030502020 

 [UdW5] [UdW6]Reunião em terreiro de umbanda 'para expulsar coronavírus' é interrompida pela polícia




Projeto Memória da Pandemia nas Alagoas
Coordenação
Luiz Sávio de Almeida e José Carlos Silva de Lima
O blog pode concordar ou não, em parte e no todo, com a matéria publicada
Nosso objetivo é deixar um painel diversificado sobre a pandemia nas Alagoas
Agradecemos a Eduardo Bastos