sábado, 30 de maio de 2020

Goretti Brandão. Entre vírus, chineladas, e sem uma vela na mão. Memória da pandemia em Alagoas





















Entre vírus, chineladas, e sem uma vela na mão

Goretti Brandão

 Jornalista e escritora

Tossiu, e eu olhei pra ela com receio. A ver pela minha cara, Violeta me disse, olhe Odete, minha tosse é seca assim mesmo. É desde sempre e a minha garganta, se interessa saber, me dói mais à noite. Tenho alergias, você nunca notou? Nesses dias, agora, quando acordo, tenho medo de estar com febre. Mão no pescoço a ver se a temperatura subiu. Não subiu? Então agradeço a Deus. Sorte minha. Mas só amanheço no susto, como se tivesse acabado de vir de muito longe, correndo, e me livrasse por um cabelinho de sapo, do infeliz do vírus. Vou ver Aprígio que dorme que nem anjo e que acorda com um bom dia, Violeta! Saudação de sempre, mas que se faltar, eu cismo logo. Sabe-se lá? Tenho enveredado por pensamentos repetitivos, que se contasse pra Nena ela ia dizer, tá doida, menina? Eu, não. Nem pensar. Maluco de verdade eu conheço uns dois.

O medo, não nego. Mas, o meu confronto com ele é na sexta-feira de tarde, quando lembro que tenho de ir à feira no outro dia. Ontem mesmo pelo celular falei pro Adilson, ‘eu me sinto como uma galinha prestes a ser abatida. Por que, dona Violeta? Ora, ela grita, esperneia, solta pena pra todo lado, quando se sente em perigo. Nunca prestou atenção no estresse? A diferença é que eu sou igual galinha, mas disfarçada de gente, fazendo papel de não estou nem aí’. Quem não tem tu é tu mesmo. Se tenho que enfrentar o problema, eu vou. Passei a vida inteira ouvindo Nena falar isto, quando não havia ninguém para ajudar, com aquele monte de menino. No caminho vou dizendo a mim mesma, ‘em cima do medo, coragem e, meu Jesus, misericórdia. Perdi o gosto que eu tinha de ir pra rua, Odete. E quarentena pra mim é como retiro espiritual.

Quando a pandemia estava vindo, Analice me perguntou, que troço é esse, e como é o nome desse negócio mesmo, hein Violeta? É covid-19, mulher. Ouviu a resposta, temerosa, que pra ela, falar nisso atrai a doença - fez o sinal da cruz - e que Deus nos proteja. Tinha que saber o nome, né? Ficou um tempo calada, mão no queixo, pensando e falou ‘condenação miserável,’ Depois enfiou-se no quarto de costura, abrindo tudo o que era de gaveta, procurando tecido. Desencavou muito pano. Terminado o café da manhã, ela tirou tudo de cima da mesa e espalhou o material. ‘A tesoura está cega’, e olhou pra mim com o rabo do olho, porque pego vez ou outra pra cortar papel. Por isso não, minha filha, e fui buscar uma garrafa para amolar. Amolei, amolei, sem tirar os olhos dela, fiz o teste do corte e fiquei ali, disfarçando riso, vendo ela morder a língua enquanto cortava o tecido.

Aprígio interessou-se em destrinchar o coronavírus. Pelo que eu o conheço, era pra encontrar uma possível luz e se sentir seguro. Depois de ter lido e assistido muita coisa e vendo tanta informação contraditória, entrou em parafuso e falou na hora do jantar, ‘a coisa só se resolve mesmo é com vacina’. Coitado, só relaxa quando dorme. Trancou-se no quarto. Confinado. Essa coisa que ele tem de ser extremado em tudo. A barba por fazer e a cara desanimada, faz até pena. Penso no que posso oferecer de mim a Nosso Senhor, pela salvação do mundo e pela angústia dele, muito maior que a minha. Mas eu estou numa pobreza só. De tudo, meu Deus. Não tenho nada de mim para dar. Tenho é vergonha dessa pretensão. O que teria eu para oferecer em sacrifício? Por esses dias de quarentena, deito, leio, durmo, acordo, penso, espero e dou regulagem em Aprígio, que vira e mexe repete, ‘a gente vai continuar nessa merda até não sei quando’. Misericórdia, Aprígio, me dê um tempo. Deixe essa cantilena para dia de sexta-feira.

Fui ver em quantas iam as costuras de Analice. Encontrei dúzias de máscaras prontas, ela falando, que tomara que essas máscaras sirvam a quem precisa delas e ‘dai pressa, Virgem Santíssima, em favor do mundo’. Os olhos cheios d’água de tanta comoção que o coração está cheio. O que me entristece é o meu, incapacitado, ter a vontade, e estar longe de imitar o dela. Então, Odete? As coisas são assim mesmo; quanto mais se tem conhecimento, mais se sofre. E aquela mulher, dizendo que matou o vírus a chineladas, pode? Estava ali, cheio de mãozinhas, andando no chão da cozinha. Conheceu. Tinha visto, uns, do mesmo jeitinho, assistindo televisão. Covardia do corona fazer judiação dela, coitada. Merece não, que está desarmada pela ingenuidade, não é, Violeta? Eu disse que sim. Está sim, Analice, e repeti, pobrezinha, pobrezinha, não sei quantas vezes. Era coisa pra gente rir muito, se os dias não fossem como têm sido.

Voltei a pensar em Pedrinho, que há dias me preocupa, dando plantão em duas utis. É muito pra ele. Deus que o defenda. De sorte que o manto de Nossa Senhora, tem dado conta de cobri-lo. ‘Olhe, minha filha, a gente sem Deus não é ninguém, sabe?’ Estou que nem a Nena, invocando Deus toda hora. É porque a minha precisão de querer a fé que ela tinha é muita. Odete, ali, eu sei, me achando de uma pieguice sem tamanho, nem aí pra minha conversa. O que é, não me conhece? Eu, hein? Ela que gaste palavrório. Eu me socorro é em Deus. Me distraio com a polêmica que cria de qualquer assunto, aquele tanto de argumento e com tanto bracejo. Nem cabe eu botar na conversa, umas duas frases das meditações de Marco Aurélio, coisa e tal, filosofia. É, não cabe. Odete é tão unilateral e se acha tão dona da verdade.  Dando opinião, porque sim, porque não, sobre cloroquina, ivermectina, anticoagulante. E quando classifica quem presta e quem não presta? Pensou um pouquinho diferente dela... Entro nessa não. ‘Você não entra nas discussões, é tão omissa, tem medo de que, Violeta?’. Tenho medo de nada não, Odete. Não quero é que você me classifique. Pra que tanto esperneio? Remédio, se precisar, eu tomo. Todos os que o meu médico recomendar. Estou vendo essa coisa toda é com o meu olho sobressalente.

Medo mesmo é de sufocar e morrer sem ar, sem luz, sem ter uma criatura caridosa, que me coloque uma vela na mão, pra eu não correr o risco de errar o caminho. De obscurantismo eu ando é cheia. Afaste, minha filha. Vá mais pra lá que eu preciso tossir.


 Projeto Memória da Pandemia nas Alagoas

Coordenação
Luiz Sávio de Almeida e José Carlos Silva de Lima
O blog pode concordar ou não, em parte e no todo, com a matéria publicada
Nosso objetivo é deixar um painel diversificado sobre a pandemia nas Alagoas