terça-feira, 12 de maio de 2020

Cármen Lúcia Dantas e Cíntia Ribeiro. NÓS QUE NOS AMÁVAMOS TANTO E O VÍRUS QUE NÃO AMA NINGUÉM. Empatia modula o “ novo normal” pós pandemia. Memória da pandemia nas Alagoas

Nosso casamento em 2013: o ano em que não corremos perigo


NÓS QUE NOS AMÁVAMOS TANTO E O VÍRUS QUE NÃO AMA NINGUÉM Empatia modula o “ novo normal”  pós pandemia


Cármen Lúcia Dantas  e Cíntia Ribeiro 


Na manhã chuvosa de domingo, 15 de março de 2020,  a ideia de isolamento social se materializou em nós. A decisão conjunta chegou uma semana após  ponderações sobre o impacto  avassalador  do novo coronavírus em outros países, principalmente Itália e Espanha.

Concordamos que a entrada da Covid-19 no Brasil  e o prenúncio de milhares de mortes, mais de 10 mil vidas e histórias dizimadas, até o fechamento desse texto (em 10 de maio), provocou em nós fraturas emocionais. Sentimos medos de ordem subjetiva e pavores coletivos. Sabíamos que o "novo normal" que estava por vir abalaria padrões e hábitos,  em sua maioria equivocados,  de nosso tempo. E abalou.

Nossa primeira constatação: pandemias como a  provocada pelo Sars-CoV-2   achatam  a curva do "individualismo de umbigo, do foco no eu sozinha. Recoloca-se no primeiro plano o senso de coletividade. Modula-se uma outra ordem de olhar empático sobre  os corpos e as  coisas “do"  e "no" mundo. 

Foi assim que nós, um casal de lésbicas - Cármen  (mulher branca,  74 anos, penedense, museóloga e professora aposentada da Ufal)  e Cíntia (mulher negra, 52 anos,  paulista, jornalista, doutoranda em Análise do Discurso e hipertensa)-  optamos por atravessar, juntas, o confinamento  e a  única pandemia de nossas vidas. 

Deixamos pra trás  o eco de um fevereiro alegre e carnavalesco. Mergulhamos num mar-ço” sombrio em que o barato" do baseado, outrora passado de boca em boca entre amigues (elas, eles e outros), cedia lugar a um cenário altamente contagioso, em que a máscara, enquanto representação mítica,  é içada à condição de sobrevivência. O mar, antes navegável, foi sugado por um tsunami de fascismo e pesadas ondas  negacionistas.  

Nossa experiencia pessoal, aqui  compartilhada, não foi construída apenas na perspectiva da diferença de gênero, mas também  a partir do acesso a direitos (água, comida, saneamento, moradia e emprego).  É desse lugar privilegiado e socialmente  higienizado"  com álcool  em gel, informação  e teletrabalho que experienciamos o isolamento social.

Nosso "lugar de fala" durante a pandemia não é acessado a partir da exclusão social. Essa é a grande angustia.   Perceber que em nós, e não em todas e para todas as mulheres, o enfrentamento  ao  novo coronavírus se daria de uma varanda suspensa”. 
Essa pseudo assepsia" não nos livra do contágio, do adoecimento e da morte pela Covid-19 que já atingiu nossos familiares. Reconhecemos o quanto nossa condição atual de saúde  não é materializada na perspectiva da desigualdade ou da  vulnerabilidade social.  E que, apesar de todo engajamento à dor e à condição de todos os corpos que estão a  nossa volta, nossa varanda permanece suspensa, longe de gatilhos de violência doméstica e de afetos abusivos. 

Nossa miserabilidade é da ordem do humano. Nossa precarização  é a impotência diante da condição de vidas LGBTQI+ . Nossa máxima ação e empatia,  não livra tantas outras Lésbicas, gays, travestis, mulheres e homens trans que, de terem,  nesse momento, suas rotas alteradase duplamente silenciadas pelo vírus real e pela política de virulência misógina, racista , homofóbica, transfóbica e machista  implementada pelo planalto central,  e que  nos atinge e  mata.

É desse lugar discursivo que enunciamos, choramos e tentamos resistir. Somadas, essas diferenças reorganizaram filigranas de nossa consciência material  e existencial.  Juntas, vislumbramos uma outra ordem de coisas e de humanidades pós pandemia com alcance para muito além de nossa bolha. Precisamos resistir.


Projeto Memória da Pandemia nas Alagoas
Coordenação
Luiz Sávio de Almeida e José Carlos Silva de Lima
O blog pode concordar ou não, em parte e no todo, com a matéria publicada
Nosso objetivo é deixar um painel diversificado sobre a pandemia nas Alagoas