segunda-feira, 27 de abril de 2020

Evelina Antunes F. de Oliveira. O vírus berra e nem todos podem ou querem ouvir. Memória da pandemia nas Alagoas (XVIII)



O vírus berra e nem todos podem ou querem ouvir

                                                                            Evelina Antunes F. de Oliveira

Professora universitária aposentada (UFAL)





Il virus urla, ma non tutti ascoltano
The virus screams, but not everyone listens
Le virus crie, mais tout le monde n'écoute pas
El virus grita, pero no todos escuchan



Faz mais de vinte anos que uma artrose come minhas articulações e eu ando muito pouco. Sair de casa é sempre enfrentar obstáculos, aí o corpo vai se aquietando na tentativa de evitar as barreiras. Então, faz muito tempo que eu saio muito pouco de casa. E agora vem o tal do novo corona e me manda não sair de casa. O que mudou? Tudo.

Antes era uma questão individual, uma tentativa do meu mundinho se adequar ao mundo de todo mundo. Agora, ao contrário, o planeta está contaminado e eu sou parte dele. Ou eu entendo isso e ajo civilizadamente ou morro e mato muita gente. E as duas coisas podem acontecer ao mesmo tempo.
O terror vem como um manto fétido cobrindo tudo porque tem gente contaminando gente 24 horas por dia. O tempo nos escorre pelas mãos.
Aprendi na juventude a pensar a saúde como uma questão pública e essa compreensão ocupa minha cabeça o tempo todo neste primeiro mês de isolamento, mais do que em qualquer outro momento da minha vida.
Tem angústia, ansiedade e momentos de muita tensão, principalmente quanto ao futuro. Até quando estaremos isolados? Como viver numa cidade onde a metade da população poderá estar morta? O que me é próprio, particular, se enrosca na trama coletiva da vida cotidiana. Não que antes não estivesse enroscada, mas agora eu não tenho como não encarar isso o tempo todo.

De um lado, pensar assim me acalma, me ensina a gostar mais de quem está ao meu lado e me situa com mais clareza no espaço coletivo do qual eu faço parte. Isto quer dizer, por exemplo, colaborar com quem está com fome; ter mais cuidado com o lixo porque os catadores e as catadoras e a cidade merecem mais a minha atenção; cuidar de não gastar muita água porque é um recurso finito e para todos;  limpar  tudo onde coloco as mãos para ajudar a não espalhar o vírus e muitas coisas mais. De outro lado, vem o tormento quando vejo milhares de pessoas sem qualquer consideração em relação ao próximo, gente que não sabe o que é  o espaço público e parece que quer continuar sem saber, ou talvez, o que é mais temeroso ainda, sequer tenha tempo de aprender.
Ainda temos sobre o Brasil, além dos imperativos capitalistas e neoliberais que insistem em nos transformar em coisas que fazem dinheiro, um governo de milicianos ligado ao que há de mais retrógrado na política mundial. Dessa máquina trituradora de gente saem pessoas alquebradas, tristes, com dificuldade de se entenderem no mundo e que não veem sentido em pensar nos outros. E assim tudo fica mais difícil.
E o que o novo corona faz com isso tudo? Berra para todo mundo ouvir que fazemos parte de uma coletividade, que não somos onipotentes ( nem com a conta bancária recheada), que ou pensamos no próximo ou nosso sofrimento será muito maior. Nas centenas de valas comuns que vemos em muitas cidades poderá estar o nosso corpo ou o corpo de alguém muito querido.
Como andam dizendo por aí é bem possível que a gente fique diferente depois da pandemia, uns mais humanos outros mais estúpidos.


Este material foi publicado pelo suplemento Campus do Jornal O Dia.

Esta série tem por objetivo publicar depoimentos sobre  como se pensa e se lida com o Corona em Alagoas.  Está aberta a toda e qualquer pessoa, de qualquer tendência. É uma documentação organizada, sobretudo, para um futuro estudioso de como a epidemia foi vista e vivida em Alagoas. O material será publicado  paulatinamente no  suplemento Campus do jornal O Dia. Está sendo  organizado por Carlos Lima, Mestre em História pela Universidade Federal de Alagoas e Luiz Sávio de Almeida. O blog pode discordar de parte ou do todo da matéria por ele  publicada.